Compromisso político e Ciências Sociais no Brasil

”As ciências sociais não têm compromisso com o povo”

Antropólogo critica a universidade e a falta de um projeto nacional Paula Barcellos

 

Especial para o JB

Se o autor fosse outro, talvez se pudesse dizer, apenas interpretando o título, que A utopia brasileira: povo e elite (Abaré, 183 páginas, sem preço definido) é mais uma obra que para ficar empilhada na seção de ciências sociais e estudos sobre o Brasil nas prateleiras das livrarias. Mas o antropólogo George de Cerqueira Leite Zarur, filiado à escola de Darcy Ribeiro, foge aos clichês das publicações recentes, para focalizar o Brasil não em fragmentos, mas como uma totalidade. Em entrevista ao JB, Zarur não se limitou a falar sobre seu novo livro. Criticou a falta de um projeto nacional no atual governo Lula, não hesitou em afirmar a existência de uma escassez de estudos inovadores sobre o país e ainda alfinetou a crise no sistema universitário brasileiro:

– As ciências sociais estão trabalhando de forma fragmentada e pouco imaginativa, repetindo há 30 anos os mesmos cansados paradigmas. Para piorar, a universidade é um ambiente muito depressivo para se trabalhar e com poucas e mal pagas oportunidades – enfatizou.

Segundo o autor, este livro é resultado da angústia de um antropólogo brasileiro frente à visão de um país que, após uma década de intensa globalização, parece despedaçado e incapaz de se enxergar como uma comunidade nacional solidária, acima das classes, raças e religiões. Mas, apesar desse retrato despedaçado, Zarur continua a acreditar na utopia de um Brasil melhor. E consegue até defini-la ou, ao menos, esboçar uma definição:

– A melhor caracterização da utopia brasileira está no discurso popular e remete à igualdade social, com a previsão de que no Brasil seria construída uma civilização nova, sem barreiras de raça, classe ou religião.

– O título do seu livro é bastante sugestivo. Qual é a grande utopia brasileira?

– A utopia brasileira assume versões diferentes, variando de acordo com seus intérpretes. Do lado da elite, a promessa socialista, compartilhada por muitos intelectuais até recentemente, era uma de suas formas. Até os militares, na versão do Brasil Potência, preconizavam a melhoria dos indicadores sociais. Do lado do povo, os grandes movimentos messiânicos, como Canudos, exprimiam a idéia da igualdade social a partir da premissa cristã de partilha. O Movimento dos Sem Terra (MST), à sua maneira, atualiza Canudos, na síntese fé cristã-igualdade social. A melhor definição da utopia brasileira está no discurso popular e remete à igualdade social, com a previsão de que no Brasil seria construída uma civilização nova, sem barreiras de raça, classe ou religião.

– Logo na introdução, o senhor diz que a maior preocupação de seu livro foi discutir a identidade brasileira. Há uma escassez de trabalhos que, de fato, retratem o Brasil?

– Sim, há uma escassez de trabalhos que se preocupem com Brasil. Não se trata de descrever ”o Brasil como é”, mas de construir uma percepção de Brasil que ajude a resgatar a esperança do povo brasileiro. As ciências sociais estão trabalhando de forma fragmentada e pouco imaginativa, repetindo há 30 anos os mesmos cansados paradigmas. Não há grande diferença na discussão teórica de muitas teses acadêmicas defendidas hoje ou nos anos 70. Há, também, muita falta de generosidade decorrente do descompromisso com as idéias de nação, povo e história e do uso acrítico de categorias supostamente neutras, como ”mercado” e ”sociedade”, desvinculadas das idéias de nação, povo e história. Há o descompromisso metodológico com o destino do povo brasileiro, com a criança vendendo bala no sinal de trânsito. Conceitos são armas que podem ser usadas contra ou a favor de povos ou pessoas. Conceitos produzidos pelas ciências sociais podem transbordar da academia para o imaginário popular e contribuir para atualização da utopia brasileira. Autores como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Celso Furtado, Darcy Ribeiro e outros criaram símbolos que ajudaram os brasileiros a se representarem, de maneira que pudessem enfrentar os desafios históricos de seu tempo. Foi esta tradição que tentei resgatar.

– Ainda é possível falar de uma identidade brasileira?

– Há um Estado, um território e um povo vivendo neste território sob este Estado. Não há, exatamente, o ”Brasil de verdade”. Há percepções do que seja o Brasil. O Brasil era imaginado, segundo a utopia tradicional, como uma grande comunidade: pela idéia de que estamos todos no mesmo barco. Solidariedade projetada para um futuro luminoso, pois a realidade cotidiana era outra. Hoje, a realidade cotidiana continua igualmente dura, mas não se consegue mais imaginar uma comunidade brasileira a partir de uma proposta de solidariedade. Está deixando de haver ”Brasil” no imaginário popular, resta apenas a ação política imediata de grupos e categorias sociais.

– Há muito tempo se fala na necessidade de construção de um projeto nacional para o país. Em que consiste tal projeto?

– Um projeto nacional deve nascer de uma utopia, como a utopia brasileira preconizada por intelectuais e pelo povo ao longo de nossa história. A utopia gera a vontade de ter um projeto, que deve ser capaz de transformar sonhos coletivos e símbolos em realidades políticas ou até em realidades de pedra e cal, como Juscelino fez em Brasília. Não há um projeto nacional permanente, mas traduções da utopia nacional em um dado momento histórico. O que se pode dizer é das condições para que haja algum projeto nacional em execução. Não haverá projeto nacional, por exemplo, enquanto se ficar alimentando artificialmente o crescimento de uma dívida pública impagável. Enquanto o país for esterilizado, na prática política e no pensamento sociológico, como aconteceu nos anos 90.

– Como o senhor analisa o projeto nacional do governo Lula?

– Não há projeto, embora a eleição presidencial tenha sido, ela mesma, uma mensagem utópica contra as barreiras de classe, com a escolha de um torneiro mecânico. Exprimiu uma forte vontade da existência de um projeto que, ao que tudo indica, não será posto em prática.

– Como surgem e qual o papel dos heróis na sociedade contemporânea? E quais seriam os heróis hoje?

– Estou convencido da importância de indivíduos na história, problema que foge às preocupações dos paradigmas dominantes. Sem dúvida, esta abordagem tem origens em Nietzche e em visões cristãs do processo histórico. Aliás, suas raízes mais antigas estão em Homero. O herói é aquele capaz de mudar a sorte do jogo, da guerra ou da história. Indivíduos certos no lugar certo, na hora certa, podem mudar tudo. Relaciona-se à questão da imprevisibilidade, do acaso. Casos clássicos são os de Pelé ou Ayrton Senna, nos esportes. Getúlio e Juscelino mudaram a sorte do jogo político e cabem na categoria de ”heróis”. Heróis são em grande parte construídos pela mídia e capazes de transformar sonhos coletivos em realidade. No meu livro, estudo o caso de Rondon, como ele soube trabalhar destramente a opinião pública de seu tempo e alterou radicalmente a política de direitos humanos no Brasil.

– Qual seria o papel das ciências políticas e da antropologia, faculdades hoje pouco procuradas pelos jovens, na construção de uma sociedade crítica?

– O papel das ciências sociais não é o de estudar fria e objetivamente a sociedade, mas o de oferecer a crítica e os símbolos que levem pessoas a se conhecer e se reconhecer melhor em sua vida em comum. No caso brasileiro atual, acredito que devemos contribuir para que as pessoas voltem a sonhar com formas de sociabilidade que as façam felizes. As ciências sociais estão perdendo glamour. Por muito tempo a antropologia exerceu uma função muito importante na luta por índios, negros, camponeses, mulheres, e outros grupos e categorias ditos marginalizados. Agora, felizmente, não há tanta necessidade de antropólogos para a construção dessas identidades que se concretizaram em movimentos sociais. As lideranças indígenas, por exemplo, constroem e comandam sua própria luta. A ciência política e a sociologia repetem esta mesma situação de falta de sintonia em suas respectivas esferas. Chegou, de novo, a hora de pensar o todo. As ciências sociais estão perdendo interesse, também, devido ao cansaço de paradigmas. Fica chata a repetição das mesmas coisas, sempre. Há, por fim, a crise da universidade brasileira, um ambiente muito depressivo para se trabalhar e com poucas e mal pagas oportunidades. As ciências sociais são, em grande medida, áreas acadêmicas e, na maioria, antropólogos, sociólogos e cientistas políticos vivem e trabalham em universidades.

2017-11-02T19:41:06-02:00By |Opinião, Sociologia do Conhecimento|