Memória Afetiva dos Villas-Boas e do Parque Indígena do Xingu

Comemora-se os cinquenta anos de fundação do Parque Indígena do Xingu, criação dos irmãos Villas-Boas que revolucionou as relações entre índios e brancos no Brasil, com repercussão além das fronteiras brasileiras nas idéias e políticas relativas aos direitos de pequenas populações etnicamente diferenciadas.

A amizade com os irmãos Villas-Boas, que enriqueceu minha existência, teve início em 1960 no Governo de Juscelino Kubitsheck, quando meu tio Nelio de Cerqueira Gonçalves foi designado Presidente da Fundação Brasil Central (FBC). A FBC construía na Ilha de Bananal, um hotel de turismo com projeto de Oscar Niemeyer, um hospital e uma pista de pouso. Hoje, as ruínas dessas obras são “curiosidade histórica”.

Após a saída de Rondon do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Boas, revoltados com os desmandos e a corrupção que tomaram conta do órgão indigenista encontraram abrigo na Fundação Brasil Central.  Envolvidos na “Operação Bananal”, Orlando e Cláudio ensinavam os brancos a respeitar os índios e a valorizar sua maneira de ser, enquanto Leonardo tocava as obras civis. Assisti a manobras de impressionantes balsas, sob o seu comando, capazes de carregar quatro caminhões caçamba “FNM”. Os comboios eram impulsionados rio acima por heróicos motorzinhos de popa suecos da Marca “Archimedes” de 12 hp, cuja importância ainda será reconhecida para a história da Amazônia. A ouvir o “tactactac” dos Archimedes, presenciei a chegada à Santa Isabel do Morro, na Ilha de Bananal, de regatões de origem árabe, os barcos carregados de uma inacreditável diversidade de quinquilharias. Traziam encomendas de índios e sertanejos, negócios celebrados há muitos meses. Alimentos cortes de chita, panelas e bules de alumínio, cobertores, redes, alpargatas, brinquedos, exemplares de revistas e muito plástico.

Em 1961, durante o governo Jânio Quadros, Orlando e seus amigos usaram, por vezes, nossa casa em Brasília para encontros que levariam à criação do Parque do Xingú. Reuniram-se com José Aparecido de Oliveira (Chefe de Gabinete de Jânio Quadros), Jorge Ferreira, (jornalista do “O Cruzeiro”) e Clemente Mariani. No Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão, apresentados a Orlando por Noel Nutels, redigiram argumentos para justificar a criação do Parque. O segundo filho de Orlando, atuante em defesa dos interesses indígenas, foi batizado com o nome de Noel, em homenagem a Nutels. Em 1961 saiu, finalmente, o decreto de criação do Parque, embora enorme área fosse subtraída da proposta original dos Villas-Boas.

A fundação do Parque do Xingú representou importantíssimo movimento na história das relações entre índios e brancos no Brasil. Integrou a revolução cultural que inventou Brasília, a bossa nova, “Grande Sertão: Veredas” e “Formação Econômica do Brasil”. Rondon, nos primórdios do século XX, assegurou aos índios o direito à vida, em um tempo em que o evolucionismo biológico preconizava sua extinção física. Os Villas Boas iniciaram uma nova era em que a diversidade cultural e a garantia da terra eram consideradas pilares da política indigenista. Lutaram pela gradativa tomada de consciência pelos índios do valor de sua identidade e da importância de sua organização política. A resistente identidade dos índios do Xingú deve-se, em primeiro lugar, ao seu próprio discernimento, mas também, a longas conversas dos finais de tarde que líderes, como Megaron e Aretana, mantiveram com Cláudio e Orlando por anos a fio.

Em 1961, antes de minhas férias de Julho no Xingu, Orlando acompanhou-me, a pedido de minha mãe, a uma das poucas lojas de Brasília, para comprar meu presente de aniversário de quinze anos. Não tirou os olhos de uma carabina calibre 22 fabricada na então Tchecoeslováquia, popularmente conhecida por “CZ”. O nome tcheco era tão complicado que a abreviatura bastava para a identificação. Desejava outra coisa, uma bicicleta a motor, como uma “Mobilete” (Caloi) ou “Monareta” (Monark), mas Orlando convenceu-me com o argumento de que “aquela era a arma dos índios e dos sertanistas”. Tenho-a até hoje e a trato como uma jóia.

Orlando era um comunicador espontâneo, uma fonte perene de afeto, o que o fazia capaz de tranqüilizar índios pintados para a guerra ou de conseguir o apoio dos políticos de Brasília. Fascinavam sua inteligência e vivacidade. Cláudio era quieto e estudioso.  Podia discorrer por longos períodos sobre Filosofia do Direito, capacidade que aliava à de exímio atirador. Ficava por horas, sem errar uma única vez, a atirar de revolver em folhinhas vistas com dificuldade a boiar a mais de trinta metros na correnteza do Xingu. Leonardo faleceu em 1963 e o antigo Posto Indígena “Capitão Vasconcelos” passou a se chamar “Posto Leonardo Villas-Boas”.

Continuei a visitar o Xingu. Em 1963, uma caminhada de cerca de seis quilômetros por estreita trilha na mata separava o Posto Leonardo da Aldeia Kamaiurá. Hoje, a estrada que a substituiu não chega a ser uma rodovia, mas permite o trânsito de caminhões. Em companhia de dois estudantes da Universidade de Brasília, cheguei à aldeia Kamaiurá, cuja população preparava-se para abandoná-la devido a um iminente ataque dos índios Txicão, denominados Ikpeng, nos tempos de hoje. Retornamos correndo para o Posto Indígena, quando fomos ultrapassados por Kamaiurás em fuga, muito mais rápidos. Encontramos ameaçadoras flechas txicão a sinalizar árvores da trilha, segundo o clássico artifício de guerra psicológica.

Descalço, fui picado na sola do pé por um animal que não consegui ver, mas, é claro, pensei imediatamente em alguma cobra venenosa. Minha perna ficaria em breve totalmente imobilizada. Cheguei ao Posto Leonardo pulando em um só pé, abandonado por meus colegas que preferiram sua segurança à companhia de um saci pererê improvisado. Fui examinado por Paulo Vanzolini e pelo médico e antropólogo físico Pedro Lima. O diagnóstico foi “picada de Formigão”, a célebre formiga Tocandira. Paulo Vanzolini cantarolava músicas caipiras e ensaiava as letras de um futuro grande sucesso. No dia seguinte já voltava a andar normalmente.

Devido à ameaça de ataque iminente, o Posto Leonardo se transformara em campo de refugiados que buscavam a proteção dos “caraíbas” (termo que designava os “brancos”). Centenas de pessoas, quase a totalidade dos índios do Xingú, passaram a noite acordadas, em estado de pânico coletivo. Era tanta gente aglomerada ao redor das casas do Posto, que não havia espaço para se deitar. Além do que, dormir não seria possível, dada a conversa gritada, nervosa, dos presentes. Muitos passaram sede, com medo de descer os quinze metros que separavam o Posto do Ribeirão Tuwatuwari. Muitos passaram fome, pois, na fuga apressada tudo tinham deixado na aldeia e os mantimentos do posto rapidamente se esgotaram.

Após três dias, constatou-se que os Txicão tinham se distanciado e os refugiados voltaram para suas aldeias. O medo tinha suas razões, pois os Txicão haviam atacado recentemente a Aldeia Waurá, de onde seqüestraram duas mulheres. Rondaram diversas outras aldeias.

Em 1964, estudante do ensino médio, acompanhei ao campo, o antropólogo Eduardo Galvão. Galvão, hoje quase esquecido, foi o primeiro brasileiro a conquistar um Ph. D em antropologia no Exterior, na Columbia University, com Charles Wagley, que mais tarde seria também meu orientador. Gozava de merecido prestígio. Bondosamente designou “monitor” o estudante que ajudou a carregar as peças de uma coleção etnográfica que permanece até o presente sob a guarda da UNB. Pedro Agostinho da Silva, aluno pós-graduado de Galvão, ensinou-me a fazer o diário de campo. Incumbiram-me da descrição  dos objetos trocados na cerimônia comercial denominada “Moitará”.

Os xinguanos sofreram pesadamente com epidemias trazidas pelos brancos, contra as quais populações indígenas isoladas não possuem defesas. Particularmente cruéis foram os efeitos da epidemia de sarampo de 1954, quando etnias inteiras desapareceram. Após esses devastadores surtos de gripe e sarampo, a malária endêmica transformou-se no principal fator a diminuir a esperança de vida dos índios do Xingu. Pelo que fui informado quase desapareceu, mas estaria a recrudescer. recentemente.

A uma distância de pouco mais de 1 km do Posto Leonardo existia uma casinha habitada pelos sobreviventes Iawalapiti encontrados por Orlando entre os Kamaiurá. Ali viviam pouco mais de uma dezena de pessoas em torno dos seus gentis líderes, os irmãos Kanato e Sariruá. Orlando e Cláudio reconstituíram diversas aldeias, permitindo o reviver de comunidades inteiras. Saíam reunindo os sobreviventes de tribos dizimadas espalhados nas aldeias que restaram. Atualmente, centenas de descendentes dos moradores daquela casinha vivem em uma bela aldeia na confluência do Ribeirão Tuwatuwari com o Rio Kuluene.

A impressionante recuperação demográfica de populações como a xinguana é motivo de júbilo para quem acompanha a situação dos índios brasileiros. Cumpre ressaltar o papel desempenhado pela Escola Paulista de Medicina (hoje Universidade Federal de São Paulo) no Alto Xingu.Vi o médico Roberto Baruzzi, professor da instituição e seus alunos se desdobrarem na assistência e em pesquisa sobre a saúde indígena, campo do conhecimento específico por eles delimitado. Na Escola Paulista foi criada a cadeira “Saúde Indígena”, cuja área de atuação era o Parque do Xingu.

O Xingu dos anos 60 era uma terra contestada por brancos que tentavam seguidamente invadi-la. Caçadores de peles de animais como onça e ariranha de quando em quando adentravam a região do Djauarum. Os índios avisavam Cláudio que saía em perseguição dos invasores. Certa vez, ao lado de Cláudio, persegui caçadores de pele denunciados pelos gritos de uma ariranha ferida à bala, que produzia um som agudo que lembrava o de um ser humano em desespero. Houve troca de tiros na qual usei meu presente de aniversário, mas os invasores  conseguiram fugir graças a um motor de popa mais potente. Por vezes, eram capturados e recebiam de Cláudio e Orlando a informação de que não deveriam mais retornar, pois se o fizessem ficariam à mercê dos índios. Assim foi preservado o Parque do Xingu.

Em 1965, Eduardo Galvão e outros professores foram exonerados da UnB por razões políticas. Quase todo o corpo docente da Universidade demitiu-se solidariamente. Estudante de graduação passei um período com Herbert Baldus no Museu Paulista, mas retornei à Brasília e me formei em economia. Só voltaria à antropologia no último ano da universidade com a chegada de Roque Laraia e Júlio César Melatti do Rio de Janeiro. Mas o contato com Orlando e Cláudio não foi perdido, amigos da família, que sempre nos visitavam em Brasília.

Retornei ao Xingu em 1971/72, acompanhado de minha esposa, a antropóloga Sandra Beatriz Zarur, para a pesquisa de campo da minha tese de mestrado no Museu Nacional. Lá estavam os Villas-Boas. Orlando no Posto Leonardo no Sul do Parque. Cláudio, desde os anos 60, no Posto do Djauarum, que assistia os grupos do Norte da área: Suyá, Kayabi, Juruna e Kayapó Txucahamãe.

Os assim denominados “xinguanos”, distribuídos segundo uma distância maior ou menor do Posto Leonardo, compõem a “área cultural do Alto Xingu” descrita por Galvão. Compartilham uma cultura comum, apesar das diferenças lingüísticas. O Alto Xingu é a melhor prova negativa da hipótese de Sappir-Whorf, que postula relações diretas entre língua e cultura, pois com línguas diversas, os xinguanos têm os mesmo costumes, rituais e sociedade. Já os habitantes do Norte do Parque têm culturas contrastantes e línguas diferentes. Sua única forma de articulação provinha da influência do Posto do Djauarum. Nessa viagem de 71/72 permanecí quase todo o tempo na pequena e distante Aldeia Aweti, no Alto Xingu.

Os dois postos indígenas funcionavam como centros de assistência à saúde. Pessoas doentes buscavam os cuidados competentes da enfermeira Marina Villas Boas, esposa de Orlando. Vilinhas, Orlando Villas Boas Filho, hoje Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, chorava forte como é dever de todo bebê. Estivesse Cláudio entre nós, estaria orgulhoso a provocar o sobrinho para debater Filosofia do Direito. Foi no improvável cenário do Djauarum, que ouvi Cláudio falar em Hans Kelsen.

Orlando e Cláudio procuravam manter os índios em suas aldeias, distantes dos postos. Com boas razões, consideravam nefasta a relação muito próxima com “civilizados”. Desestimulavam o contato com estranhos. Além da transmissão de doenças preocupavam-nos a desestruturação do modo de vida tradicional e a perda da identidade. Travaram duras lutas com missionários que tentavam adentrar o Xingu com a Bíblia sob o braço. Enfrentaram garimpeiros e os já mencionados caçadores de peles. O contato da grande maioria dos índios do Alto Xingu com não índios dava-se essencialmente no Postos, onde obtinham bens que, rapidamente, se tornaram indispensáveis, como facas e facões, machados, panelas de alumínio, tesouras e anzóis.

Era grande a preocupação dos Villas-Boas com a base aérea do Jacaré, situada a algumas poucas dezenas de quilômetros do Posto Leonardo. Ali moravam o sargento que a comandava e alguns soldados. Era o próximo pouso do Correio Aéreo Nacional (CAN) após o Posto Leonardo. Tornou-se um ponto de contato entre índios e brancos não controlado pela administração do Parque. Era foco de disseminação de doenças, inclusive de doenças sexualmente transmissíveis. Um tema popular de pintura corporal entre os xinguanos era o escudo da FAB. A relação com a FAB era complicada, pois o Parque dependia inteiramente dos aviões do CAN.

Voltei ao Parque apenas em 2004, quando, na grande aldeia Iawalapiti dos tempos atuais, todos os índios do Alto Xingu prestaram merecida homenagem a Orlando, com a realização de um  belo Kwarup, festa para mortos ilustres. Marina e filhos honraram-me ao me convidar para ocupar no ritual posição junto à família Villas-Boas.

Pude constatar, nessa rápida visita, que não se bebe mais água dos rios e ribeirões do Alto Xingu, pois a poluição das nascentes obrigou à perfuração de poços artesianos. A tradicional cena das mulheres equilibrando um caldeirão na cabeça na beira do Ribeirão tornou-se mais rara. Motocicletas, tratores, caminhões e barcos a motor de propriedade dos índios transitavam entre as aldeias.

Nos velhos tempos, após cruzar o cerrado do Vale do Araguaia, com escalas em Aragarças e Xavantina, os DC3 da FAB (restos norte-americanos da Segunda Guerra Mundial) voavam sobre uma mata sem fim, até pousar no Posto Leonardo. Hoje, os limites do Parque são evidentes do ar, pois é reta a linha demarcatória que separa a mata verde escura do Parque dos intermináveis cultivos de soja, que, com fertilizantes e agrotóxicos poluem as águas dos formadores do Xingu.Os índios do Alto Xingu não se alimentavam da carne dos grandes mamíferos. A principal fonte de proteína era o pescado. Os únicos mamíferos caçados eram macacos. Em 1972, em um campo próximo às então aldeias Aweti e Mehinakú, presenciei, do alto de uma pequena elevação, a uma cena extraordinária, que lembrava os filmes das savanas africanas. Centenas, talvez milhares, de veados e cervos pastavam pacificamente, sem medo dos seres humanos. Estavam acostumados com o convívio com os índios do Xingú que não lhes trazia perigo. Soube que décadas mais tarde, em gesto de boa vizinhança, os xinguanos convidaram os índios xavante para caçar nesse campo. Com o uso do fogo na caçada, em um único dia os caçadores Xavante teriam matado mais de 30 veados e cervos.

No Xingu da década de 70 não havia circulação da moeda corrente nacional.  Tampouco havia uma “moeda” local que servisse de meio de troca. Além dos poucos objetos pessoais que cada pessoa possuía, de alto valor eram as contas de miçanga cor azul rei fabricadas na então Tcheco-eslováquia, que só podiam ser encontradas na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. Utilizavam-nas na elaboração de colares e pulseiras que funcionavam como ornamento, e símbolo de prestígio. Algo parecido com “jóias” na sociedade européia. Possuí-las, no Xingu era uma forma de entesourar riqueza. Aceitavam, mas com pouco entusiasmo, a miçanga de fabricação nacional, menor, vermelha ou azul clara.

Os índios, com a exceção dos que moravam nos postos não costumavam usar qualquer vestimenta. E se o faziam era como enfeite, não como abrigo para o frio, ou menos ainda, devido às noções de pudor importadas da sociedade ocidental.

Era uma vida cotidiana relaxada e alegre. Nunca presenciei o castigo físico de crianças. O tempo fluía lentamente com reuniões de todos os homens no final da tarde em frente à casa das flautas, nas quais as mulheres não podiam entrar.  A rotina diária era bem diferente para homens e para mulheres. Enquanto essas ficavam, a maior parte do dia, em pequenos grupos perto da luz da porta das grandes casas xinguanas conversando, ralando mandioca e em outras atividades domésticas, os homens passavam um bom tempo nas redes, a pescar ou conversar em frente à casa dos homens.

Havia notável sincronia entre o bem estar individual, a vida ritual e a vida econômica, equilíbrio que pode estar abalado nos tempos atuais. Os xinguanos eram altamente “individualistas”, isto é, os anseios e necessidades individuais ocupavam um primeiro plano e eram respondidos pela sociedade. Sem querer idealizar a vida tradicional do Xingu, pode-se afirmar que a  sociedade era concebida como um instrumento para o bem estar e felicidade da maioria dos indivíduos. Porém, o complexo da feitiçaria criava uma situação de tensão permanente.

As relações entre as necessidades individuais, a vida social e a própria economia se originavam da idéia de doença, isto é, do mal-estar ao nível do indivíduo. A doença era considerada como causada pela comunidade, quando esta não realizava determinados rituais ou, mais comumente, entendida como causada por um feiticeiro. Apenas as doenças novas na região trazidas pelos brancos , como o sarampo ou a gripe, não eram entendidas como resultado da culpa coletiva da comunidade ou da ação de um feiticeiro. Por esta razão, os tratamentos com recursos locais não eram usados para essas enfermidades, para as quais eram indicados remédios caraíbas. As doenças locais eram tratadas por pajés.

Os xinguanos acreditavam e provavelmente ainda acreditam que cada elemento do universo natural e social teria um ou mais seres sobrenaturais correspondentes chamados “mamaés”. Havia, portanto, uma infinidade de mamaés: mamaés de peixes, plantas e de todos os animais de pelo. Objetos, como a pá de virar beiju teriam  um mamaé.
O mamaé mais importante era o que tem o nome de “Karytu” em língua Aweti, chamado “Djakuí” pelos Kamaiurá. Representava a comunidade masculina da aldeia. Outros mamaés de destaque eram o Iamuricuman, que simboliza a comunidade feminina e o Auajá (Anhangô do Kamaiurá e da língua geral) associado com os velhos da aldeia.

Os mamaés eram entidades neutras, as quais, entretanto, reunidas algumas condições, podiam atuar em prejuízo das pessoas, causando doença e morte. Se um homem fosse pescar, por exemplo, e ouvisse a canção de um mamaé poderia ficar doente.

Rituais próprios para os mamaés mais importantes deveriam ser executados regularmente. Se não o fosssem ou o fossem de forma inadequada poderiam aparecer doenças. Os mamaés tinham seus “donos”, as pessoas responsáveis pela realização de seus rituais. Se não houvesse a distribuição de alimentos em quantidade satisfatória durante os rituais, as doenças poderiam grassar.

Na maior parte dos casos, porém, supunha-se que os mamaés agiam em resposta à intervenção de um feiticeiro. Os indivíduos considerados como feiticeiros eram sempre adultos do sexo masculino que, em geral, experimentavam um nível de marginalidade frente à vida social acima da média. Via de regra, não tinham um grande grupo de parentes consangüíneos, não eram pajés e não desempenhavam um papel relevante nos rituais mais importantes. Os homens considerados “feios”, de baixa estatura e franzinos eram mais propensos a serem acusados de feitiçaria. Alguns eram pessoas nervosas, tristes e deprimidas ou que assim ficavam devido à própria suspeita de feitiçaria expressa em murmúrios, olhares e insinuações. A acusação de feitiçaria poderia, em “crescendo” dramático, evoluir para uma sentença de morte .

É possível que, de fato, existissem homens que assumiam o papel de feiticeiro, para ganhar vantagens pessoais, como a de receber presentes para não fazer mal aos demais ou até mesmo, a de manter relações sexuais com mulheres, que o faziam para proteger a si mesmas e suas famílias.

Em 1972, as aldeias já estavam cheias de crianças, mas a memória da epidemia de sarampo de 1954 que dizimou grande parte da população ainda era muito forte. Apesar do sarampo ser uma doença “caraíba”, que, portanto fugia à responsabilidade direta de um feiticeiro local, a associação difusa do sofrimento da doença e da tristeza da morte com responsáveis humanos criava suspeitas permanentes. No período em que estive no Xingu, o principal fator de letalidade era a malária, que, para os xinguanos, não estava associada claramente com os brancos. Impunha muito sofrimento. Era entendida como conseqüência da ação de feiticeiros.

O complexo da feitiçaria tinha enorme importância na integração da sociedade, pois tanto o medo da feitiçaria, como o medo de ser considerado feiticeiro explicavam, em parte, a gentileza e até a não violência dos xinguanos em seu relacionamento cotidiano. Além do mais, a feitiçaria padronizava condutas, pois todos procuravam se comportar da maneira mais normal como uma antecipada defesa frente a possíveis acusações de feitiçaria. A execução de um acusado de feitiçaria lembrava a todos, da forma mais dramática, a necessidade de se comportarem no cotidiano segundo as normas prescritas pela cultura local. O poder coercitivo do estado na regulação de condutas pessoais encontrava um precedente eficaz no medo da fetiçaria xinguana.

Quando alguém ficava doente era chamado um pajé e às vezes alguns pajés. Em alguns grupos indígenas brasileiros os status de feiticeiro e de pajé se confundem. Não é este o caso do Xingu, onde um pajé de destaque nunca era considerado um feiticeiro, embora sempre se levantassem dúvidas sobre todos os homens da região. Os pajés fumavam fortíssimos cigarros até ficarem em estado de transe. Nesta condição poderiam ver o mamaé que entrou dentro da pessoa doente. Em alguns casos, o pajé podia encontrar um feitiço, um pequeno graveto, após correr em transe pelo mato.

Identificado o mamaé causador da doença, a cura acontecia por meio da execução do ritual correspondente. Para tanto, algum parente do doente entregava ao “dono” do ritual, a quantidade de peixe e beijus necessária.  Com o ritual, o mamaé saia fisicamente de dentro do corpo do doente.

Havia abundância de alimentos no Xingu. Portanto, não é surpresa que a realização de rituais com farta distribuição de comida fizesse parte do dia a dia. Quando escrevi minha tese de mestrado sobre os xinguanos, apresentada em 1972 ao Museu Nacional, classifiquei os rituais internos às aldeias xinguanas em rituais de oposição sexual e em rituais de oposição entre as gerações. O principal ritual de oposição entre gerações era o Auajá (em língua Aweti), o Anhangô dos Kamaiurá e da língua geral. Além da cura de doenças, os rituais xinguanos eram realizados também por outras razões, seja para a mobilização do trabalho masculino, seja por simples divertimento ou para pacificar a hostilidade potencial de algum mamaé poderoso.

Como foi mencionado, Karytu era o nome do ritual mais importante. Era, também, o nome do mamaé e das grandes flautas cerimoniais, que não poderiam ser vistas pelas mulheres. Podiam apenas ouvir seu som grave que lembrava o de órgãos de igreja. Caso uma mulher as visse, os homens esperavam que se afastasse do pátio da aldeia, quando seria estuprada por todos(“gang rape“), com a possível exceção de alguns de seus parentes mais próximos.

As flautas possuiam uma casa no centro da aldeia que era também a casa dos homens.  Karytu é um mamaé de peixe e vive na água. Durante a noite, a praça da aldeia pertencia à Karytu. Por isto, quando escurecia as mulheres ficavam confinadas em casa, pois as flautas podiam sair de sua casa a qualquer momento. Karytu era um símbolo que representava a comunidade masculina da aldeia e sua superioridade política frente às mulheres.

As chefias de aldeia eram partilhadas. Os status de “Capitão” e “Morekwat” (Morerekat em Kamaiurá) eram logicamente opostos e politicamente complementares. Enquanto o Morekwat designava os descendentes de velhos chefes, algo como uma “aristocracia de sangue”, com destacadas funções rituais e prestígio elevado, o “capitão” falava português e intermediava as relações da aldeia com o posto indígena. Os morekwat sentavam-se em bancos rituais durante a cerimônia do Kwarup e em outros rituais e tinham direito a três marcas tatuadas no braço. As tatuagens eram aplicadas tanto em homens como em mulheres morekwat. Os jovens candidatos a “capitães” após difíceis excursões capturavam uma enorme águia, a harpia harpyja e a prendiam em uma grande gaiola no centro da aldeia, ao lado da Casa dos Homens. Eram um impressionante emblema de poder e de orgulho tribal.

Economista que nunca deixei de ser, estudei na minha tese de mestrado as relações entre a organização social, o ritual e a economia dos índios do Xingu (mais tarde, no doutorado, iria estudar as relações entre sociedade e economia entre pescadores norte-americanos). O que os economistas chamam de “externalidades” são, a rigor, questões absolutamente centrais para o entendimento das economias ditas “primitivas” ou “pré-mercado”. Na verdade, tais sistemas econômicos são plenamente integrados a outras esferas da vida social. Assim, o ritual do Karytu é a força capaz de mobilizar o trabalho coletivo masculino, como a construção de casas e grandes pescarias para realização dos rituais intertribais que integram toda as aldeias do Alto Xingú.

Para estudar o sistema econômico do Xingú parti das questões clássicas em economia relativas à produção, à distribuição e ao consumo. Obviamente nesse tipo de formação econômica,  o fator trabalho tem peso muito maior do que nas economias em que as maquinas substituem o ser humano. A divisão sexual do trabalho era o aspecto central na especialização das atividades. Por outro lado, o próprio ritual, especialmente o Karytu, ao mobilizar o trabalho masculino, situava-se como peça essencial no mecanismo produtivo, como “fator de produção”.

A especialização tribal era mais de caráter simbólico do que decorrente da necessidade material. Os bens produzidos e associados a cada tribo eram trocados – e ainda o são – em grandes cerimônias intertribais. Rituais que envolviam tribos diversas eram essenciais para casamentos intertribais, para a interdependência e para a convivência pacífica das diferentes aldeias. Os bens de especialidade de cada tribo ou conjunto de tribos pertencentes ao mesmo tronco ou família lingüística circulavam quando de sua realização.

Os Waurá do tronco lingüístico aruak especializavam-se na fabricação de grandes e belas panelas de cerâmica, usadas para a guarda de produtos como massa de mandioca e para a culinária antes da chegada dos utensílios de metal. Os Mehinaku, grupo Aruak de menor população e menor influência política eram “donos” da “panelinha”, pequenos recipientes de cerâmica altamente decorativos, muitos dos quais com forma zoomórfica, usados para a guarda de temperos e outros ingredientes culinários

Cabia aos Tupi Kamaiurá, a confecção dos melhores arcos xinguanos, o chamado “arco preto”, manufaturado  de uma madeira vermelha escura, flexível e resistente. Os Karib, caso de seu maior grupo no Xingú, os Kuikuro, produziam o chamado “arco branco”, de qualidade inferior ao arco Kamaiurá. Porém, tudo indica que todos os índios do sexo masculino de todas as tribos sabiam como fazer arcos. Disseram-me que havia uma maior concentração de árvores cuja madeira era usada para a confecção do arco preto próxma à aldeia Kamaiurá.

Se os Kuikuro não produziam bons arcos, eram os joalheiros do Xingu, artesãos especializados nos maravilhosos colares de caramujo, que inspiram  coleções ditas “étnicas” expostas nas mais caras vitrines do mundo. A carabina calibre 22, como a minha CZ, era o objeto que representava os brancos.

Esses bens de especialização tribal eram os de maior valor no mundo xinguano de então. Eram trocados, apenas, uns pelos outros, o que os caracterizava como uma “esfera de troca”, conceito elaborado por Paul Bohannan em artigo de 1957.

É inadequada a aplicação acrítica de conceitos utilizados na análise das economias de mercado moderno a economias como a Xinguana. Termos como “capital” foram substituídas em minha análise por “instrumental”. Já “trabalho” e “recursos naturais” são categorias relativamente neutras, que podem ser utilizadas sem preocupação em quaisquer tipos de economia. A questão dos estoques assume notável importância para sociedades que dependem de um ciclo produtivo anual para a exploração dos recursos naturais da área.

A análise da distribuição passava pela doação de bens caraíba para os índios, tais como anzóis, utensílios domésticos de alumínio, instrumentos agrícolas de metal, além, eventualmente de espingardas e munição calibre 22. As mulheres recebiam objetos como sabão e espelhos, além das panelas de alumínio. Os núcleos que abasteciam o Xingu de bens industrializados eram o posto indígena, visitantes e a base aérea do Jacaré.

O escambo simples e direto, ou o presente com a expectativa de reciprocidade eram freqüentes na vida cotidiana para o reforço de laços de amizade, de amor e, até, para a pacificação de feiticeiros. Porém, os xinguanos de quarenta anos atrás possuiam pouquíssimos objetos de uso pessoal: enfeites que cabiam em uma cesta, arcos e flechas, panelas e raras carabinas 22.

Trabalhava-se muito pouco, segundo alguns cálculos, os homens, em média, três horas e meia. As mulheres talvez uma hora a mais. O resto do tempo era dedicado a dançar e a conversar. Todo começo de manhã o “capitão” da aldeia fazia um discurso tendo como tema, por exemplo, a necessidade de “vencer a preguiça”. Tinha-se, em geral, o suficiente para uma boa alimentação, muito melhor do que a de nossos pobres urbanos e uma vida saudável e tranqüila, apesar da malária que grassava e da lembrança terrível de epidemias devastadoras. As crianças enchiam os pátios com o som alegre das brincadeiras. A população estava em franco crescimento.

O Parque do Xingú era uma área isolada, protegida pelas distâncias e pela floresta. O único acesso dava-se por vôos supostamente semanais dos DC3 do Correio Aéreo Nacional, por um dos quais, certa vez, esperei mais de mês em Goiania. Hoje é accessível por estradas. Além das fazendas que o cercam, centros urbanos, como Canarana, crescem em suas fronteiras. O contato com os brancos tornou-se permanente.

Só espero que no Xingu seja para sempre ouvida a alegria ruidosa das crianças livres. Que seus pais conservem a capacidade de se horrorizar com os castigos sofridos pelos filhos dos caraíbas. Que os velhos continuem respeitados e honrados. E que todos vivam em ambientes de solidariedade e afeto desconhecidos pela cultura ocidental contemporânea.

Uma terra em que, como dizia meu querido amigo Orlando:

“seja o velho, dono da história; o homem, dono da aldeia; e a criança, dona do futuro”.
2019-02-17T00:12:37-03:00By |Opinião, Opinião e Viagem - Capa|