A Relíquia Bárbara: Excesso de Liquidez e Crise de Acumulação II

Gostaria de apresentar algumas hipóteses para tentar entender a crise econômica atual, ocasião em que pretendo contribuir para investigar a relação entre tecnologia de informação, moeda e concentração de renda.

A presente crise é uma crise de liquidez e uma crise de acumulação, na qual problemas decorrentes da acumulação e da liquidez se interrelacionam.

1º -A Questão da liquidez: a atual crise decorre do excesso de liquidez na economia global.

Tanto no padrão ouro, quanto na conversibilidade do dólar implantada a partir Bretton Woods, havia controles automáticos da quantidade global de moeda disponível. Esse sistema encontrou seu fim em 1971, quando os Estados Unidos decidiram abandoná-lo e, ao longo dos anos, desregular bancos e outras instituições criadoras de moeda.

O imenso déficit público americano é compatível com um estado que tem a capacidade de fabricar riqueza na forma de papel moeda. É mais fácil produzir papel moeda ou títulos lastreados em moeda nacional do que explorar as minas de ouro e prata de além mar, como faziam Espanha e Portugal dos tempos coloniais. O avanço do iene não chegou a ameaçar a posição hegemônica do dólar, mas o Euro passou a representar uma verdadeira alternativa. Por isto, o Euro foi como que uma discreta bomba atômica lançada na economia norte-americana. Se o euro apostou na valorização frente ao dólar, portanto, em substituí-lo enquanto reserva de valor, o yuan chinês desvalorizado frente ao dólar enfrenta-o ao facilitar o crescimento das exportações chinesas. É uma bomba atômica não tão discreta. Há que se observar que a valorização do Euro chegou ao seu limite devido à crise atual na Europa e, especialmente, ao final da expansão de mercados para absorção da produção industrial, principalmente, da alemã, por meio da agregação de novos países à Comunidade Européia.

Entretanto, os Estados Unidos continuaram como a força maior da economia mundial. Por décadas, o dólar continuou forte e o sistema financeiro norte-americano manteve-se em acelerada expansão apoiado no poder político e militar dos Estados Unidos.

Mas há um fato novo que não está sendo considerado com a merecida ênfase para explicar a explosão monetária das últimas duas décadas: o papel das novas tecnologias na produção de moeda. Os trilhões de dólares do capital especulativo a voar de um lado para o outro do mundo resultam, em boa parte, da inovação na tecnologia, basicamente, de sistemas de comunicação, telefonia, computadores e internet, que permitem a realização dos depósitos interbancários a uma velocidade de nanosegundos. Basta lembrar as dificuldades tecnológicas de comunicação até por telefone, durante a década de 50, tempo em que o isolamento cultural entre as nações era tão acentuado que “falar inglês” era um diferencial de status entre as pessoas.

A inovação tecnológica nas comunicações repercutiu diretamente na produção de moeda escritural pelos bancos, ao possibilitar a existência de uma nova “moeda virtual”, cuja maior diferença frente à moeda escritural clássica é velocidade com que é produzida. A velocidade da troca de depósitos entre os bancos tende, nas economias modernas, a tornar irrelevante a produção primária de moeda pelo estado. Da mesma forma, o crédito direto e automático via cartão de crédito representa um mecanismo de criação de demanda por moeda (através da antecipação do consumo).

As novas tecnologias impõem, como nunca dantes, o uso de “âncoras”, como era o caso do padrão ouro no passado, ou de controles normativos adequados como os encontrados em alguns países do presente. Caso contrário, a velocidade de circulação e, portanto, de criação de moeda tende ao infinito. Seu único limite é a capacidade de empregá-la. Como o que se observou nos últimos tempos foi a desregulamentação no sistema monetário, produziu-se uma enorme oferta e uma insuficiente demanda de moeda. Logo, créditos arriscados como os regidos pela taxas subprime, foram saídas naturais para se criar, a todo custo, a demanda por moeda frente a uma oferta que tende para o infinito.

Embora o autor corra o deliberado risco de usar uma esquecida noção introdutória, a velha equação de Fischer pode ajudar no entendimento do que acontece quando a velocidade de circulação da moeda tende para infinito. A equação, embora seja um truísmo que nada explica, representa útil meio didático para descrever relações fundamentais em economia monetária.

Relembrando-a:

MV=PQ i

O que acontece quando V tende para infinito? Os demais termos também tendem para infinito, ou seja, a equação passa a retratar uma impossibilidade. Torna-se absurda enquanto descrição do mundo real, inconsistência que retrata o que acontece hoje na economia mundial e, especialmente, na economia norte-americana. Uma oferta de moeda que tende para infinito torna inviável a economia mundial, pois dentre outras conseqüências presumíveis estaria a destruição do valor de todas as coisas.

De outro lado, esta mesma capacidade dos bancos de criar moeda escritural ou em sua nova versão, a “moeda virtual”, acaba por enfraquecer o estado americano que perde a capacidade de controle de sua moeda nacional. Para não falar dos demais países que só produzem dólares mediante a troca por bens e serviços reais junto à economia americana. Na prática, o estado americano tornou-se caudatário do sistema financeiro, um grande prestador de serviços políticos e militares. O centro criador de moeda e grande pólo de poder é o sistema financeiro.

2º – A Questão da acumulação. A atual crise é uma crise de acumulação mediada pela produção de moeda sem regulação pelo setor privado.

A outra face da crise é a da acumulação. Não só há excesso de moeda, como ainda é ela extremamente concentrada e, por seu intermédio, é concentrada a riqueza. Marx entendeu as crises cíclicas no capitalismo como crises de acumulação. A riqueza ficaria tão concentrada que a produção não mais encontraria destino. Estamos, hoje, diante de uma crise de acumulação com características especiais conferidas pela importância da questão monetária. ii

As últimas décadas assistiram a um expressivo movimento de concentração de renda e, portanto, de acumulação de capital. Estudo do OCDE, divulgado pelo Financial Times em 13/10/2008, revela que a desigualdade aferida pelo índice Gini tem avançado avassaladoramente na maior parte das nações que integram a organização nos últimos vinte anos, com destaque para os Estados Unidos da administração Bush. Hoje, os Estados Unidos, juntamente com a Inglaterra são os mais desiguais dentre os países ricos. É razoável supor que a atual crise econômica tenha uma relação com este processo de concentração de riqueza, ou seja, que se trate de uma “crise de acumulação”.

A atual crise de acumulação não tem sua origem no capitalismo industrial, mas no capitalismo financeiro, situação também analisada por Marx, ainda que de passagem . No seu tempo, a questão financeira ainda permanecia em segundo plano. Hoje, seria adequado falar-se em “propriedade dos meios de produção de moeda” para designar um novo setor de classe social, os “supercapitalistas”.

Não existiria crise se os compradores de casas americanos não tivessem que tomar empréstimos para adquiri-las, mas, ao contrário, pudessem pagá-las com suas poupanças, ou ainda, se ao tomar os empréstimos tivessem o suficiente para honrá-los, independentemente do valor de mercado de seus imóveis. Neste último caso, os empréstimos para a aquisição de casas seriam assumidos para que se liberassem recursos do tomador para outros investimentos. Mas os imóveis que deram origem à crise do subprime foram comprados por pessoas de renda insuficiente para pagá-los mesmo que a prazo. Isto também acontece nos demais setores da economia, além dos imóveis, como se observa na elevada taxa de inadimplência de cartões de crédito dos últimos tempos nos Estados Unidos.

O que estava à venda não era a casa, mas o empréstimo, ou seja, a mercadoria de maior relevância para o sistema econômico era a própria moeda no tempo. Havia um excesso de moeda que precisava ser passada adiante e supunha-se que os tomadores não precisariam de uma renda capaz de cobri-la, uma vez que o imóvel hipotecado era a garantia da transação. Assumia-se, para tanto, que os preços das casas estariam sempre estáveis ou em ascensão.

O sistema funcionava bem enquanto a renda do conjunto dos tomadores pudesse pagar as prestações do conjunto de empréstimos. No momento em que a parcela de renda dos assalariados alocada à compra de casas chegou ao limite ou muito além do limite em incontáveis casos, os preços dos imóveis entraram em queda livre e o sistema em colapso. Aumentou a inadiplência, caiu subitamente a demanda e com ela, o preço dos imóveis residenciais e assim, as garantias dos créditos.

O caso dos cartões de crédito nos Estados Unidos é análogo, embora tenha um caráter menos dramático, pois ocorreu gradativamente. Também aqui, o mais importante para o sistema financeiro era o empréstimo, ou seja, a colocação de moeda no mercado. Já há tempos a inadimplência aumentava ano a ano no sistema de cartões de crédito norte americano, que passaram a representar uma nova forma de moeda em que o crédito já está embutido. Trata-se, por isto, de meio circulante mais caro que a moeda emitida pelo estado. O cartão de crédito é um tipo especial de título, como outros títulos, uma representação da moeda, uma “moeda de moeda”.A massificação da produção de títulos emitidos por qualquer pessoa por meio de despesas realizadas com cartões de crédito gera um incalculável efeito multiplicador na quantidade e na velocidade de circulação da moeda.

O mesmo processo repetiu-se na compra de ações, cujos rendimentos eram – assim como na ilusão dos preços dos imóveis estáveis ou sempre crescentes – garantidos pelos rendimentos esperados das empresas. No plano mais abstrato dos títulos, o que acontecia era não mais do que a troca de dólares por dólares em um jogo do tipo “pirâmide” ou “corrente”. As únicas “garantias” eram as mitológicas aferições atribuídas por agências de risco ou por avaliações de analistas de bancos de investimento. Havia um descolamento muito grande frente à economia real, pois o sistema financeiro se retroalimentava. Porém, na ponta, tudo era bancado pelo resto do mundo, que produzia os bens e serviços reais que garantiam o padrão de consumo e renda norte-americano e de alguns outros poucos países associados.

A atual crise, portanto, não é de escassez de moeda, mas, ao contrário, de encharcamento do sistema econômico por um volume de moeda que, em determinado momento, revelou-se incapaz de se sustentar devido à queda dos preços dos bens usados em garantia; e que, no caso dos títulos, não se sustentou devido à falsidade da suposição de que seriam garantidos. Trata-se de um caso de falsas expectativas a respeito de falsas expectativas. Qualquer coisa como expectativas a enésima potência. E a teoria econômica muito tem a ver com isto.

A queda nos preços dos ativos reais teve início no momento em que os salários se revelaram incapazes de pagar pela moeda que lhes era antecipadamente empurrada para o consumo e para investimentos em ações, títulos e bens duráveis e semiduráveis e no instante em que as empresas se revelaram incapazes de apresentar a lucratividade que as análises delas esperavam para a garantia dos títulos lastreados em seu desempenho presumido..

A atual “crise de liquidez” é, portanto, uma crise de crédito devido à falta de tomadores de empréstimos com condições de saldá-los.  Não é uma crise de decorrente da baixa oferta de moeda disponível para empréstimos, uma vez que de uma hora para a outra, o sistema financeiro viu-se incapacitado de emprestar por falta de tomadores de empréstimos capazes de honrá-los.

Portanto, não será com a cobertura dos rombos trilionários dos bancos privados que a crise será resolvida. A doação de moeda do estado para o setor financeiro apenas fará pior a situação, tornando a economia ainda mais “encharcada”, embora alivie o balanço dos grandes bancos durante alguns dias ou meses.

A transferência maciça de recursos para o setor financeiro não é uma política keynesiana típica, que penderia para o lado oposto, para a inversão de recursos governamentais no consumo das famílias, com a ampliação do emprego, aumento da massa salarial e da propensão ao consumo.

A produção desenfreada de moeda somente por alguns é, naturalmente, concentradora de renda. Por isto, o excesso de liquidez na economia e a acumulação de riqueza compõem um único movimento histórico. Também integra esse mesmo movimento, a cooptação do povo norte-americano por meio de um padrão de consumo sem limites apoiado no crédito. O consumo norte-americano tem efeito similar ao uso de drogas, pois as pessoas não sabem viver sem praticá-lo. Aqui afloram importantes externalidades, especialmente as de ordem cultural. Uma comparação ilustrativa do vício do consumo compulsivo da população norte-americana seria com o uso de ópio pela população chinesa durante o século XIX. Resta perguntar se os Estados Unidos conseguirão se livrar do vício do consumo e se o resto do mundo conseguirá viver sem uma população americana viciada em consumo.

Por tudo isto, a solução da crise passa por uma radical redistribuição de renda internamente nos Estados Unidos e na maior dos países, bem como por uma efetiva redistribuição de renda entre os diversos países, para que, na ponta, os salários recuperem seu poder de compra e retornem os investimentos na produção. Passa, também, pela estatização do sistema financeiro e por um efetivo controle da quantidade e do destino da moeda produzida.

Se, nos Estados Unidos, a liberdade de criação de moeda escritural está na raiz do problema, é desejável a taxa de juros mais baixa possível para se aumentar a demanda por crédito pelas famílias. As baixas taxas de juros americanas são um acerto em meio a muitos erros, o maior dos quais é a compra de títulos “podres” dos grandes bancos, ou seja a injeção de moeda nova em um sistema financeiro no qual vicejam mecanismos de produçao de moeda e ao qual falta recipientes qualificados de crédito. Desde 2008, os problemas de caixa dos grandes bancos resultam sobretudo da diminuição brusca dos empréstimos interbancários devido à interrupção do processo de produção de moeda.  Tal interrupção decorre da perda de valor dos ativos dados em garantia por títulos e na ponta,  da queda da quantidade de consumidores finais de créditos bancários aptos a honrá-los.

Já no Brasil, onde o maior devedor é o governo, a taxa de juros já deveria estar por volta de, pelo menos, cinco pontos abaixo da atual, mas tal medida afetaria gravemente os rendimentos dos altamente lucrativos bancos brasileiros. Colocaria em xeque a tão apregoada “saúde” do sistema financeiro nacional. O atual governo vem dando importantes passos no sentido de diminuir o irracional nível dos juros, os mais altos do mundo.

A solução efetiva para a crise mundial passa pelo estabelecimento de controles rígidos na expansão da moeda. O único caminho possível, nos Estados Unidos e no restante do mundo, será a estatização definitiva do sistema bancário, para que o estado resgate a produção de moeda como uma de suas funções básicas ao lado da justiça e da defesa.

Karl Polanyi, durante a segunda guerra mundial, quando as economias ainda se recuperavam do trauma de 29, escreveu sua obra prima “A Grande Transformação”, em que demonstrava que a conversão da terra, do trabalho e da moeda em mercadorias, a partir de uma crença semireligiosa no mercado livre autoregulável, criava um sistema altamente artificial, contraditório à condição humana. Chamou à terra, ao trabalho e à moeda de “mercadorias fictícias” para as quais a sociedade desenvolveria formas de controle para evitar sua autodestruição. Uma das grandes funções do estado moderno, segundo Polanyi, seria o controle dessas “mercadorias fictícias” e especialmente da moeda. No caso da Alemanha, por exemplo, o nazismo teria sido uma forma perversa de resgate do estado após a fragilização de toda a sociedade devido ao descontrole financeiro da República de Weimar.

Vivemos uma situação histórica em que a moeda é mais do que uma “mercadoria fictícia”. É a mercadoria que confere a identidade ao sistema econômico atual, da mesma forma que a produção industrial caracterizou o capitalismo até algum momento do século passado. No capitalismo financeiro do presente, a produção de bens e serviços “reais” é relegada a plano secundário e freqüentemente vê-se em oposição ao setor financeiro. Ou seja, a atual crise manifesta a inviabilidade de relações financeiras que, de tal forma artificiais e complexas, ficam em contradição estrutural com o mundo real das fábricas, do comércio, dos escritórios e das famílias.

Após o esgotamento das políticas keynesianas, durante a década de oitenta do século passado, os bancos centrais passaram de reguladores a garantidores de moeda enquanto mercadoria livremente transacionada. Os bancos centrais, para Polanyi, seriam o mecanismo de defesa contra o sistema financeiro, em si mesmo predatório à sociedade e aos demais setores da economia. No entanto, com sua “independência”, tornaram-se instrumentos de intervenção do sistema financeiro sobre o estado. É indispensável o resgate do estado para o controle da quantidade e os fluxos de moeda. Para tanto será urgente a intervenção da sociedade em bancos centrais ocupados por equipe ideologicamente leais ao setor financeiro.

A produção de  moeda, da mesma forma que as doenças, deve ser severamente vigiada pelo Estado e pela sociedade, pois, sem controle, pode trazer sofrimento, desemprego, pobreza, xenofobia e guerra.

Para que , assim como o ouro classificado por Keynes como “relíquia bárbara”, não contamine o mundo com seus efeitos cruéis!

Notas

i M=volume de moeda; V=velocidade de circulação; P=preços; Q=quantidade bens produzidos.

ii O saudoso Professor Lauro Campos escreveu uma tese demonstrando as aproximações entre as idéias de Marx e Keynes. Keynes teria, como Marx, identificado as crises cíclicas do capitalismo como crises de acumulação e responderia, para salvar o capitalismo, com mecanismos diversos, que estimulando a demanda, desconcentrariam a renda.

iii Ver Karl Marx, O Capital, vol. 3, cap. XXX

2019-02-17T00:15:03-03:00By |Economia Política, Opinião|