Brazilianismo, Raça e Nação

A Fundação Ford desempenhou importantíssimo papel na história das idéias no Brasil. Apoiou o CEBRAP, instituição onde nasceram correntes de pensamento social autônomo, no tempo em que a ditadura reprimia os intelectuais nas universidades. Apoiou a institucionalização de alguns dos mais importantes centros nacionais de pós-graduação em ciências sociais e possibilitou a carreira de muitos pesquisadores brasileiros. Eu e muitos outros pudemos estudar em programas financiados pela Ford, aqui e nos Estados Unidos. Apoiado pela Ford, fiz pesquisa de campo em comunidades norte-americanas sobre as relações entre negros e brancos naquele país. Meu querido professor, Charles Wagley, consultor da Fundação, afirmava orgulhosamente que, com o apoio obtido para o CEBRAP, estavam conseguindo “manter viva uma tradição intelectual brasileira”. Mas, o mundo mudou, os Estados Unidos e a Ford mudaram. A arrogância imperial substituiu o antigo brazilianismo simpático e humano, versão americana da social democracia, que falava a língua extinta do velho Partido Democrata norte-americano.

Estudando o Sul dos Estados Unidos, em 1939, John Dollard publicou um livro cujo título em português seria Casta e Classe em uma cidade do Sul (usando as categorias weberianas de “classe” e “casta”). Seu trabalho manifestava a tendência da sociologia americana do período, que reconhecia muita mobilidade no sistema de classes norte-americano e barreiras impenetráveis no sistema de raças, uma vez que a miscigenação era, por premissa, abolida. De fato, como nos Estados Unidos, uma gotinha de sangue “negro” classifica alguém como “negro”, não pode haver qualquer mobilidade entre “raças”. Daí o uso do conceito de “casta” para descrever segmentos sociais endogâmicos separados por barreiras intransponíveis. Segundo este raciocínio, os Estados Unidos, ainda hoje, teriam “castas” endogâmicas racialmente definidas, embora a divisão do trabalho entre “castas” não seja tão evidente como no tempo em que Dollard escreveu seu livro.

Já, na visão dos brazilianistas impunham-se como determinantes as óbvias distâncias entre classes sociais brasileiras além de forte preconceito contra pessoas de pele escura. Entretanto, chegaram à conclusão que a fronteira entre “raças” era difusa no Brasil, uma vez que brancos, negros, índios e todos os tipos de mestiços eram classificados ao longo de um continuum. Antropólogos, como Franz Boas, ficaram boquiabertos ao descobrir que os Inuit (antigamente chamados de “esquimós”) tinham dezenas de palavras para designar as diferentes nuances e cores da neve que para nós é, apenas, branca. Da mesma forma, antropólogos como Marvin Harris (nos anos 50) ficaram espantados ao saber que os brasileiros possuíam dezenas de palavras para as diferentes tonalidades de cor de pele, traços fisionômicos e tipo de cabelo, como “mulato claro, mulato escuro, sarará, cafuso, mameluco”, etc. Brasileiros, reconhecemos diferenças entre as pessoas que os americanos não percebem por não serem lingüística e conceitualmente equipados para tanto. Para os americanos todo mundo é branco ou “não branco” e, dentre os “não brancos” há categorias rígidas como latinos, negros, índios e asiáticos. Havia muito preconceito no Brasil, de acordo com esses mesmos autores, mas o preconceito era ativado pela cor da pele, tipos de cabelo e traços fisionômicos. Não pela genealogia. Na mesma linha, o sociólogo paulista Oracy Nogueira classificaria como “preconceito de raça”, o critério norte-americano da gota de sangue e como “preconceito de marca”, o critério brasileiro da cor da pele, cabelo e traços fisionômicos.

Os velhos brazilianistas também constataram que os mestiços brasileiros ricos e de status mais alto tendiam a ser classificados como “brancos” – caso do jogador Ronaldo, que se declarou “branco” e é considerado como tal. Já, outros mestiços como o ex-presidente Fernando Henrique, considerado “branco” no Brasil, é “negro” ou, no máximo, “latino” nos Estados Unidos. Fernando Henrique é filho da elite: um avoengo seu, chamado Felicíssimo, foi governador do Estado de Goiás e seu pai era um general importante. Lula, de origem paupérrima, não aparenta nada de mestiço. Frei Davi dos Santos, o frade franciscano que ganhou notoriedade organizando os cursos pré-vestibulares chamados “Eduafro”, se identifica como “negro”, mas tem sido, por muitos, classificado como “branco”, pois tem a pele morena clara, traços finos e cabelos lisos. Por isto, a afirmação de que “há muito poucos negros entre professores universitários”, simplesmente não é verdadeira, pois ninguém sabe, com certeza, o que é um negro no Brasil, com exceção dos que possuem a pele muito escura. O Professor Fernando Henrique é branco, mestiço ou negro? A lamentável afirmação – repetida até por graves ministros de estado – de que “a polícia conhece a diferença entre negros e brancos” é atribuir à polícia um papel na formulação de conceitos culturais para a qual não tem legitimidade e aceitar como inevitável o preconceito que permeia a sociedade brasileira, como se a polícia e outras instituições não pudessem mudar.

O sistema social brasileiro era concebido pelos primeiros brazilianistas como a imagem invertida no espelho do sistema norte-americano. Valorizava-se positivamente o modelo norte-americano de classes sociais e o modelo brasileiro de relações entre pessoas de cor de pele diferente. Eram formas opostas de organização nas quais os seres humanos eram mais ou menos maltratados por razões diversas. No Brasil, mais por serem pobres e, nos Estados Unidos, mais por serem negros. Essa era uma forma de se criticar o sistema racial norte-americano, por contraste com o Brasil. E, de se criticar o sistema de brasileiro de classes sociais, por contraste com o norte-americano. “Zero a zero no marcador”, diria o atual Presidente da República.

Hoje, nos Estados Unidos, instalou-se o discurso do “multiculturalismo”, que sem as devidas cautelas não passa de uma atualização do “separados mas iguais” (separated but equal) do racismo clássico norte-americano, agora, porém, transformado em virtude democrática. Negros e brancos devem viver cada qual no seu mundo, em nome do respeito a diferentes culturas. Assim, os negros têm o “direito” de viver em seus guetos, observando os ditames de sua cultura da pobreza, como bem demonstrou sua situação na recente catástrofe de Nova Orleans. O multiculturalismo, embora possa ser de extremo interesse para a defesa das populações indígenas mais isoladas, quando aplicado aos negros urbanos, confunde o democrático direito à diferença individual e à diversidade cultural com a espúria associação entre a “raça” e os “costumes” de um povo. O nome dessa associação é racismo.

Um dos aspectos do multiculturalismo aplicado sem os necessários cuidados é a construção separada de nações sob o mesmo estado. Há uma nação branca, com uma elite branca e uma nação negra, com uma elite negra. O passo lógico seguinte do sistema de cotas (já abandonado nos Estados Unidos) é a representação proporcional no Parlamento e no governo das diferentes etnias reconhecidas. Como no Líbano, com a diferença que as etnias naquele país são demarcadas pelo critério de religião e não pelo de raça. O chamado “Estatuto da Igualdade Racial” já aponta nessa direção ao estipular cotas para as diferentes “raças” em concursos públicos.

O racismo – vestindo o chapéu do multiculturalismo – tornou-se um elemento da identidade política norte-americana. A questão racial é central ao discurso político norte-americano da atualidade, exportado com fervor missionário para o Brasil, por militantes mantidos por fundações como a Ford. Fundações norte-americanas estão dentre as principais financiadoras de muitos dos movimentos raciais que pregam a divisão da nação e da classe trabalhadora brasileira. No jogo da identidade nacional não há mais empate. Os Estados Unidos têm de ganhar de goleada e se houver reclamação são os donos do campo e da bola, seguram a redonda debaixo do braço, vão embora e melam o jogo.

Um marco no surgimento do brazilianismo arrogante foi o livro de Thomas Skidmore “O Preto no Branco”, publicado em 1976. Em apenas três páginas reduz a nada, a família, a igreja, os intelectuais, o sistema político e a literatura do Brasil dos começos da República. Trata-se de uma notável demonstração de ignorância, pois Skidmore menospreza autores como Machado de Assis e Euclides da Cunha. Na conclusão, procura demonstrar que a situação dos negros, nos Estados Unidos da década de 1970, “era melhor do que no Brasil”. A crítica racial integra um movimento de sacrifício político da identidade nacional brasileira para a construção política da identidade nacional americana.

A partir dos anos 80, recursos externos, com destaque para os da fundação Ford, foram pesadamente investidos em ONGs raciais e em diferentes movimentos raciais, que objetivam a criação de uma nova identidade negra. Como os autodeclarados negros, pelo censo do IBGE – pouco mais são do que 5% da população – pretende-se que a identidade negra inclua também os 42% “pardos”. É uma impostura, pois “pardos” não são “negros”. “Pardos” são mestiços. São, ao mesmo tempo, “afrodescendentes”, “índiodescendentes” e “eurodescendentes”. Considerá-los como negros – ou como subcategoria de “negros”, denotada na expressão afrodescendentes ou “negros e pardos” – representa a importação do critério norte-americano da “gota de sangue”, associada ao genocídio simbólico do índio.

Cotas se transformaram em um ovo de Colombo. No Brasil, não se sabe ao certo o que é um “negro” e a cultura negra tornou-se patrimônio da nacionalidade, constituída por “brancos”, “negros”, “índios” e “pardos”. Para se cooptar os “pardos” é oferecido o prêmio de uma vaga mais fácil na universidade para que vistam a identidade “negra”, pois “pardos” podem ser identificar como quiserem, como “brancos”, “negros”, “índios” ou, até mesmo, como “pardos”. O outro lado da identidade negra é o voto nos candidatos que as defendem. Cotas raciais são uma reivindicação concreta e quantificável e, por isso, dotadas de um potencial de mobilização política muito maior do que a luta direta contra a discriminação ou a valorização da herança cultural africana. Além do mais, políticas sociais de custo zero para o orçamento público são um achado no atual contexto de pobreza governamental.

A ação de missionários raciais norte-americanos ficou evidente na ação perpetrada por Edward Telles, professor na Universidade da Califórnia e ex assessor da Fundação Ford no Brasil. Telles traduziu para o inglês a carta entregue aos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, assinada por centenas de intelectuais preocupados com projetos de lei raciais. Deu à mensagem que divulgou nos Estados Unidos, o título fraudulento de “Manifesto da Elite Branca”, como se a mensagem tivesse sido assim assinada.

É inaceitável que intelectuais norte-americanos e brasileiros e dinheiro norte-americano acirrem as já muitas divisões do povo brasileiro. Mais grave ainda, por fazê-lo pela via da etnicidade, motivo das maiores tragédias do mundo de hoje. Olhem para o Líbano!

É inaceitável que a promoção das diferenças raciais, dividindo os mais pobres e colocando a nação em risco, se invista em política do estado brasileiro.