Nação e Multiculturalismo em Cuba: Uma comparação com os Estados Unidos e o Brasil

(Publicado pela FLACSO-Brasil, Cadernos, 2005)

  1. Projetos Culturais e Modelos de Construção da Nação (1)

As nações modernas foram criadas pelos estados (ver Hobsbawm, 1990). A escola uniformizou a língua falada e escrita em seu território e ensinou uma versão da história construída para realçar um passado partilhado por todos os cidadãos. Por meio de um sistema jurídico comum os estados padronizaram as relações sociais e econômicas. Sob o patrocínio dos estados, a disseminação de padrões que vão da religião aos hábitos alimentares operaram no sentido de fazer acreditar que todos os habitantes de um determinado território seriam católicos e, de outro, protestantes; que todos os cidadãos franceses gostariam de vinho e queijo e os americanos de cachorros quentes e assim por diante. No que diz respeito à alimentação, pratos como o churrasco, o “queijo minas” e bebidas como o guaraná ou o mate, foram nacionalizados no Brasil de Getúlio Vargas. As pessoas se alimentam das comidas de seu país, em uma forma de inconsciente comunhão, pois mesmo os atos de falar e comer tornam-se um ritual cotidiano de reafirmação da nação.

Os traços que definem uma nação, assim devem ser, simplificadores e estereotipados, para que, com clareza, possam marcar identidades, diferenças entre os povos e similaridades entre os membros de um povo. O peso de cada traço varia: recente pesquisa entre os franceses demonstrou que, para o povo francês, a alimentação é a segunda característica determinante de sua maneira de ser, apenas superada pela língua. Não há dúvida, por outro lado, que a religião, como marcador de identidade, se sobrepõe aos demais aspectos em situações como a da Irlanda, da Croácia, Sérvia e Bósnia, além, evidentemente, dos países islâmicos. A associação entre religião e identidade nacional explica a resistência dos países muçulmanos à globalização. A escolha de um ou outro traço definidor da nação trabalha no mesmo sentido, de que seus povos imaginem uma comunidade maior do que a que os cerca de forma imediata

É a partir do processo de construção pelo estado da identidade das nações modernas, das quais o exemplo paradigmático é o francês, que se pode entender a resistência cultural enquanto resistência política. A França, muito antes e com maior sucesso do que, por exemplo, a Itália ou a Espanha, criou uma unidade política por meio da escola pública propagadora do ideário republicano da igualdade. Já a Espanha, até hoje, se debate com questões regionais. São, por sinal, notáveis as diferenças entre os países bascos da França e da Espanha. A Itália, tardiamente unificada – a padronização da língua nacional deu-se apenas com Mussolini – também não conseguiu nada comparável à França.

Na outra ponta do espectro há casos, como o da Inglaterra, que deu continuidade e estendeu o modelo imperial de convivência de diferentes povos e nações sob o mesmo estado. Tanto a Inglaterra, como a França convergiram para o capitalismo, a democracia e o respeito às liberdades individuais. Também, na Inglaterra, sob diversos pontos de vista, os privilégios da nobreza foram abolidos. Entretanto, o estado francês, em nome do mesmo ideário republicano que, em 1789, aboliu tais privilégios, continua promovendo efetivas políticas buscando identificar povo, nação e estado. Isto não impediu que a tão propalada anulação das diferenças lingüísticas regionais na França repita-se nas Ilhas Britânicas, onde os idiomas de origem celta são falados por uma pequena minoria. Assim, não é tão marcante a diferença entre os dois exemplos, no que diz respeito ao crucial aspecto da língua falada e escrita.

Caso emblemático para a discussão do projeto cultural francês, ao anular certas diferenças (aceitando outras), em nome do princípio republicano do estado laico, foi o do uso do véu pelas meninas mulçumanas. A proibição do véu levou, por questão de coerência, à abolição de crucifixos ou de qualquer símbolo religioso na escola. Já a Inglaterra não possui qualquer tipo de projeto cultural, em nível de estado, embora, os possua fragmentados, fortes e ativos, ao nível de setores sociais e comunidades locais. Tal é o caso das comunidades nacionais das ilhas britânicas e arredores, como a Irlanda, a Escócia e o País de Gales. Enquanto o projeto cultural francês representa uma forma de intervenção estatal, o inglês é deixado a critério da sociedade. Isto não impediu que o estado inglês tenha atuado com máxima dureza, para apoiar o projeto nacional/cultural dos escoceses protestantes transferidos para a Irlanda.

Tais diferenças entre projetos culturais foram analisadas pelo filósofo canadense Charles Taylor, comparando o Quebec com o Canadá Inglês. É evidente a semelhança com modelo não intervencionista inglês na economia, caracterizado por maior liberdade de ação do mercado. Mesmo porque a economia é apenas um aspecto, dentre outros, da cultura.

Se as diferentes formas de projeto cultural divergem quanto ao seu centralismo, a diversidade pode se fazer tanto em um como em outro. A diversidade cultural é um valor central à democracia, tanto no modelo republicano, como no modelo imperial. A questão é saber se a diversidade deve ser implementada associada à fórmula republicana povo, nação e estado ou à fórmula imperial povos, nações, estado. A diversidade cabe em ambos os modelos, pois é arbitrário o nível de diferença cultural requerido para a definição dos limites entre povos e nações.

Povo e nação, além de frias categorias identitárias, são profundas referências emocionais que mobilizam para a guerra ou para a paz. Por isto a definição das fronteiras étnicas e as escolhas de quem as desenham pode representar um fator fundamental na política interna e externa dos estados nacionais. Se a diversidade cabe tanto no modelo imperial, como no republicano, a diferença é que no modelo republicano, é enfatizado o sentimento de pertencimento a um único povo e a uma única nação, no mesmo território, sob um mesmo estado. (2)

Há, nas Américas, três situações nacionais definidas por um projeto cultural, pelo poder do estado e pelas ações públicas voltadas à construção de etnicidade enquanto categoria política. São os casos dos Estados Unidos, do Brasil e de Cuba, que serão analisados ao longo deste trabalho.

(Ver Benedict Anderson, 1983).

II – Multiculturalismo e Racismo nos Estados Unidos

Apesar da retórica de inspiração francesa e antiinglesa, em sua origem, uma possibilidade instigante é a de que o modelo imperial tenha sido, parcialmente, exportado para os Estados Unidos, de onde nunca teria sido completamente extirpado e onde, hoje, estaria ressurgindo. A retórica revolucionária francesa foi central ao discurso político norte-americano, mas ao tempo em que se implementava o “melting pot” para os cidadãos originários de diversos países europeus considerados de “raça superior”, havia dificuldades na absorção dos italianos, proibiu-se a imigração de árabes, os índios eram exterminados e os negros, após a abolição, segregados e tratados com violência.

Os Estados Unidos têm, hoje, como modelo, um mosaico de grupos étnicos endogâmicos politicamente opostos, definidos por noções da biologia do século XIX que, até o presente, impregnam o pensamento popular norte-americano. O princípio republicano de igualdade está subordinado ao de “raça”, pois o melting pot é só para os brancos, embora a noção de “brancos” esteja sendo flexibilizada, pela aceitação dos católicos e dos judeus. A noção de “raça” não foi, porém, de todo, dissociada da religião, pois, hoje, os mulçumanos árabes são um dos principais focos do racismo americano. Houve melhor aceitação (ainda desconfortável) de alguns “não brancos”, como os hispânicos de pele clara. A quantidade de casamentos inter-raciais, especialmente entre orientais e os de origem anglo-saxã tem aumentado. Os negros, porém, continuam a ser pesadamente estigmatizados.

Nos Estados Unidos, o critério da “gota de sangue”, leva à classificação como negro a quem tiver algum antepassado negro. Em muitos estados, como Mississipi, a lei prevê que é negro aquele que tiver um oitavo de “sangue” negro. Em outros estados esta percentagem é de um quarto. O não reconhecimento do mulato, nos Estados Unidos, parte da idéia de impureza do negro, como se “raça” fosse uma espécie de doença contagiosa transmitida pelo sangue.

O discurso político norte-americano, ao longo da história, excluía do conceito de “povo americano” parcelas da população definidas por critérios raciais. Hoje, chegou-se a um compromisso, através da idéia do multiculturalismo, que pressupõe a convivência de diferentes povos ou nações no mesmo território, sob o mesmo estado. O princípio norte-americano atual é, portanto, o de um único estado, vários povos e nações, bem diferente da uniformidade do estado republicano originado da revolução francesa. Representa o retorno ao modelo imperial pré-existente. Um sistema de “ação afirmativa” seria a maneira de compensar a desigualdade e de fazer representar todos os povos e diferentes nações no corpo político do estado. (2)

Os Estados Unidos abandonaram o princípio republicano e assumiram o imperial, por não terem, historicamente, formado um único povo. O democrático direito à diversidade foi, porém, transferido ao plano racial. A implicação é a de que diversidade “racial” implica, necessariamente, diversidade cultural. Assim, os negros norte-americanos têm o direito à diferença cultural, mesmo que tais diferenças não resultem da valorização étnica em nome da tradição africana, quase toda desaparecida, nos Estados Unidos, mas de uma construção recente originária da marginalidade e da reação política à opressão racista. Por isto, têm um dialeto próprio, uma culinária originária do Sul (branco e negro) dos Estados Unidos, igrejas protestantes com rituais e músicas específicas, além de um grande número de convertidos a uma versão particular da religião mulçumana. Possuem uma música própria e muitos se vestem de maneira diferente. Tais diferenças são politicamente tratadas como se fosse o caso de tribos pré-colombianas que preservam sua cultura original. Ainda, como um traço imanente e natural.

O discurso do direito à diferença não impede e, provavelmente, até contribui, para a situação atual de inferioridade econômica e segregação da população negra norte-americana, da qual o aspecto mais visível é segregação residencial em guetos. A prevalência da pobreza, do desemprego, do tráfico de drogas e da criminalidade entre negros é mascarada pela retórica do multiculturalismo, pois a comunidade territorialmente definida, o gueto negro, é a base social tanto da igreja como da música negra e da soul food, e também, da pobreza, do desemprego ou do tráfico de drogas. Separar os dois lados, o social e econômico do cultural, ou o lado “bom” e o “mal” do gueto consiste em exercícios um tanto sem sentido. Mesmo porque se há algo que caracterize as “relações raciais” nos Estados Unidos são o antagonismo ou a indiferença e não traços culturais que marcariam identidades diversas. A etnicidade é definida, nos Estados Unidos, não pelo contraste cultural, mas, pela oposição entre os diversos grupos étnicos. Daí que não caiba a categoria “multiculturalismo” para caracterizá-la. Cabe ressaltar que a ênfase nos limites étnicos, praxe na explicação antropológica desde Barth, cai para um segundo plano quando se considera o caso americano. A oposição entre grupos étnicos chega a ser mais importante que a própria definição do limites, embora seja esta condição para aquela.

O direito à diferença é uma das bases do estado democrático, mas o discurso do direito à diferença representa, no caso em questão, um argumento para a indiferença e um pretexto para impedir as pessoas de morarem onde quiserem, de estudarem em boas escolas e de gozarem de boas oportunidades de vida. Para serem discriminadas em nome do conceito de “raça”.

O retorno ao modelo imperial de um só estado, muitos povos e nações, contribui para o equilíbrio interno dos Estados Unidos. O multiculturalismo de base racial é associado à democracia como uma expressão do direito à diferença. Assim, o multiculturalismo, construído a partir da premissa de que cada “raça” possui uma cultura e uma visão de mundos diferentes, transformou-se em conceito central do discurso político norte-americano. Representa uma atualização epistemológica e política do racismo tradicional norte-americano, agora transformado em virtude democrática.

III – A crise do Projeto Cultural Brasileiro e o Multiculturalismo

Internamente aos Estados Unidos o multiculturalismo é um conceito de armistício. Como tal estabiliza as relações entre grupos étnicos e setores sociais. Porém, o mesmo não acontece quando é exportado para outros contextos nacionais. De fato, o discurso do multiculturalismo pode ser altamente desestabilizador em países como o Brasil ou em Cuba. Integra, associado a outros conceitos, o que Pierre Bourdieu e e Loïc Wacquant (1998) denominaram a “nova vulgata”. O estado que, historicamente, construía a uniformidade, hoje se espera que apóie a diversidade, a partir, segundo esses autores, de conceitos como “globalização”, “multiculturalismo” e vários outros. O multiculturalismo seria a tradução para a etnicidade do neoliberalismo econômico.

Subjacente a esta nova tabela de valores há uma nova situação internacional de poder definindo o imperialismo simbólico, que brota da hegemonia dos Estados Unidos. A matriz cultural americana impõe valores e conceitos e exclui outros valores e conceitos. Desta forma, projetos culturais tradicionais promovidos há séculos por outros estados nacionais vêem-se questionados. Freqüentemente, esses projetos culturais construídos sob o princípio de um estado, um povo e uma nação são considerados antidemocráticos, pois excluiriam a diversidade. Hoje, é tal a força da matriz cultural norte-americana que, mesmo na França, berço do ideal republicano moderno, políticos propõem a implementação de cotas em empregos e instituições de ensino, usando o exemplo das universidades brasileiras! (3)

Um projeto cultural nacional foi iniciado, muito cedo no Brasil, com a miscigenação promovida pelos portugueses. O sincretismo cultural é um fato e, no plano afetivo, surgiu um só estado, um só povo e uma só nação, mesmo que tenham sido incorporados ao discurso de nação o reconhecimento das diferenças regionais e das diferenças culturais mais marcantes, sobretudo as das populações indígenas mais isoladas e distantes dos centros urbanos.

Os diferentes projetos culturais parecem se originar de algo muito profundo nas diversas culturas européias. A ótica de povoamento portuguesa diferia da inglesa. Enquanto aquela concebia os índios como escravos e trabalhadores a serem incorporados à ordem produtiva, esta os classificava como nações autônomas com as quais se assinavam e rasgavam tratados e com as quais se declarava a guerra e se fazia a paz. O índio era o inimigo. Já para os portugueses, índio inimigo era aquele que se recusava a se submeter. Mais do que “inimigo” era um “rebelde”.

A posição católica portuguesa parte da premissa da inclusão. Todos são potencialmente salvos, desde que aceitem a submissão e a hierarquia (via de regra, associada às mais duras práticas repressivas). A posição inglesa protestante parte da premissa da exclusão. Os eleitos, como percebeu Weber, já estão previamente assinalados. O desenho das comunidades (tanto as locais como as nacionais/imaginadas) é diferente, na medida em que a inglesa e a norte-americana têm limites rígidos enquanto a ibérica e a latino-americana possuem limites difusos (ver Zarur, 2003). A premissa portuguesa/brasileira da inclusão é aparente não só no cotidiano do sistema de parentesco, sempre em expansão potencial pelo recurso ao compadrio, como no “calor humano”, isto é, na abertura à comunicação fácil nas relações pessoais.

A matriz político-cultural norte-americana é exportada para países como o Brasil pela influência difusa da cultura norte-americana e pelos meios de comunicação de massa que repercutem dois fatores simultâneos: o pensamento acadêmico e a ideologia de diversos movimentos sociais.

A visão que um país tem do mundo e de si mesmo é, em larga medida, produzida no ambiente universitário. (4)Formou-se uma massa crítica acadêmica com uma visão essencialmente norte-americana do mundo, que se dissemina pela sociedade brasileira. Não só as nossas universidades passaram a ver o Brasil “de fora” , como ainda, criou-se, em muitas áreas do conhecimento, um cânone acadêmico que desprestigia o debate político, esquece o conceito de nação e privilegia o estudo “técnico” de objetos ultrafragmentados.

A historicamente recente valorização da diversidade pelo respeito às culturas indígenas (5)toma, no Brasil, uma feição não racial, pois na lei brasileira, o índio não é definido pela genealogia, nem pela aparência física, nem pela cultura, mas por pertencer a uma comunidade de origem pré-colombiana que é reconhecida e se reconhece como indígena na genial definição de Darcy Ribeiro. Com esta concepção e sua incorporação à lei, o Brasil abriu, ainda na década de 50, um novo caminho na área de direitos humanos.

Esta definição legal de “índio” “desracializa” os movimentos indígenas no Brasil, o que os torna legítimos, sob todos os pontos de vista. Entretanto, mesmo neste caso, não cabe a aplicação do conceito de “multiculturalismo” uma vez que vários grupos indígenas, reconhecidos como tal pelo critério identitário de Darcy Ribeiro, não possuem qualquer diferença cultural expressiva frente aos membros da sociedade envolvente. Não há, portanto, o “multi” do “multiculturalismo” mas apenas, uma comunidade com identidade a parte.

Já, para as populações indígenas que mantém muito de sua cultura original prevê-se, a partir das idéias disseminadas pioneiramente pelos irmãos Villas-Boas, que devam ser protegidas por largas extensões de terras e preparadas, ao longo de muito tempo, para interagir com a sociedade brasileira para exercer o democrático direito à diferença. A organização de diferentes grupos indígenas em frentes políticas comuns representa um avanço relevante nesta direção. O objetivo é de que tais grupos indígenas, mantidos sua língua e vários outros aspectos de sua cultura original, participem do mercado e da política nacionais, para o que devem, portanto, falar, também, o português. Respeitadas suas diferenças culturais são percebidos pelos outros brasileiros como um povo integrante do povo e da nação brasileira. (6)

Deve ser levada em conta, nesta discussão, a ambigüidade dos conceitos de “povo” e “nação”. Assim, como se fala no “povo carioca” ou no “povo mineiro”, como forma de integrá-los ao povo brasileiro, pode-se falar em povos indígenas ou no povo Karajá ou Aweti, sem excluí-los do povo brasileiro. Da mesma maneira pode-se falar na “nação” indígena A ou B, como integrando a nação mais ampla brasileira. Esta é uma posição que vai de encontro ao melhor interesse dos povos indígenas, até para que todos os brasileiros se sintam responsáveis pelos destinos uns dos outros e, especialmente, pelos dos mais desprotegidos dentre os desprotegidos, os povos indígenas isolados. Corre contra o interesse dos índios, o discurso de, em nome da proteção das culturas nativas, não se ensinar o português na escola, ou ainda, mensagens implícitas como a contida na expressão “índios no Brasil”, ao invés de “índios do Brasil”.

A luta contra o preconceito contra negros no Brasil e a garantia da diversidade são indispensáveis para construção de uma sociedade democrática, mas perde-se legitimidade quando, em se questionando o projeto cultural tradicional brasileiro, é importado o racismo norte-americano que, de tempos em tempos, explode em surtos de violência racial. O conceito de negro, no molde genealógico da biologia popular norte-americana, expresso pelo termo “afrodescendente”, vem sendo disseminado por vários movimentos organizados, muitos dos quais, na fórmula expressa por Bourdieu e Wacquant, resultam de investimentos de instituições norte-americanas. (7)

O discurso da “raça” foi incorporado por forças políticas à esquerda e à direita, que propuseram diversas iniciativas legislativas voltadas à criação de cotas étnicas. Cotas étnicas representam, ou melhor, representavam – pois há uma crescente reação – uma verdadeira “mina de ouro” política, pois em uma situação de corte radical de despesas governamentais é descoberta uma medida que não implica o uso de novos recursos. Quem paga a conta das cotas em universidades ou empregos públicos é a classe média supostamente branca, que vai cedê-las à classe média supostamente negra. Portanto, o estado centra o aspecto mais visível de sua ação “politicamente correta” na implementação de cotas em diferentes setores. Buscando “racializar” estatísticas escolares, foi distribuído um questionário onde se pergunta a “raça/cor”, induzindo os jovens a considerar relevantes tais classificações e insinua-se, a partir da capa do questionário, que “raça” e “cor” são o mesmo.

Enfrenta-se o grave problema de ninguém saber, exatamente, quem é negro no Brasil, excetuadas as pessoas de tez de pele absolutamente escura. O jogador Ronaldinho, recentemente, declarou-se “branco”, o que traz a tona o conceito de “raça social”, pois mulatos bem sucedidos econômica e socialmente, tendem a ser considerados brancos. Fala-se em “afrodescedentes”, substituindo-se o critério tradicional de cor de pele pelo de “sangue” ou tenta-se classificar todos os mestiços como “negros”. Parlamentares propõem documentos raciais, a partir de um critério genealógico (8). A Universidade de Brasília criou algo como um “Comitê de Pureza Racial” para investigar, por intermédio de entrevista, se candidatos a cotas para negros são, “realmente negros”.

Há, porém, os índios. Se todos os mestiços são considerados negros, os índios são apagados do passado brasileiro. O etnocídio simbólico dos negros na memória nacional repete-se, agora, contra os índios, por iniciativa dos que ignoram que, mesmo do questionável ponto de vista genético/biológico, a cor morena do brasileiro, tanto se deve aos índios como a negros. Por outro lado, no momento de se formular “políticas raciais”, em geral cotas, a percentagem de negros é aferida pelo Censo de População, por autodeclaração ou por critérios de entrevista, como no citado caso da Universidade de Brasília. Usa-se, desta forma, critérios de “sangue” ou de aparência para se identificar um negro e um critério identitário extremamente restritivo, de pertencimento a uma comunidade particular, para a identificação de um índio. O resultado é que enquanto se apregoa que a população indígena é de, por volta, de 400.000 pessoas, a população negra chegaria a mais da metade da população brasileira. Na verdade, o correspondente conceitual ao que se define como “índios”, no Brasil, são os “quilombolas”, que também vivem em comunidades a parte.

Tais dificuldades conceituais levam a que o argumento estatístico – o mais comum em defesa do sistema de cotas – de que “o negro é a maioria dos pobres, por isto merece políticas específicas”, desdobre-se em um duplo sofisma. Primeiro: se não se sabe, exatamente, o que é um negro, as estatísticas sobre o assunto ficam sob suspeita; segundo: em sendo verdadeira a prevalência estatística de negros entre os mais pobres, os demais pobres não devem ser abandonados. Este é, sobretudo, o caso dos sertanejos nordestinos, dentre os quais, a percentagem de pessoas de pele mais escura é sensivelmente reduzida.

O que está acontecendo no Brasil é típico de um País culturalmente colonizado, dotado de um sistema político muito frágil, pois o próprio estado brasileiro desiste de um projeto cultural secular e constrói o racismo. Porém, enquanto a elite branca e negra, ao assumir o discurso racial, manifesta sua orientação cultural no sentido dos Estados Unidos, o povo brasileiro insiste na miscigenação e na partilha da herança cultural comum negra, branca e indígena, sem distinções de quem a assume. Os brasileiros pobres, brancos, negros, índios e mestiços de todas as gradações de cor de pele resistem a pensar racialmente e ainda se orientam na sentido da tradição latino-americana.

Os estados-nação modernos constroem a etnicidade procurando unir os que habitam seus territórios. Os norte-americanos não conseguiram atingir tal objetivo, devido à exclusão racista, mas, encontraram uma forma de coexistência pacífica entre grupos étnicos, por meio do retorno cânone imperial. Ainda a tornaram algo positivo e desejável, inerente ao discurso democrático. Nos Estados Unidos, esta fórmula funciona devido ao poder do estado e do mercado. O estado abarrota as prisões de negros desviantes e o mercado articula os indivíduos e grupos étnicos. A riqueza do País mantém todos no mesmo barco. Não obstante, garantida a mesma afluência, a maior parte dos negros norte-americanos desejaria viver em seu próprio estado nacional (9). Se algum dia, a situação econômica norte-americana se deteriorar por décadas contínuas e o País se empobrecer, as tensões raciais e étnicas se acentuarão com conseqüências imprevisíveis.

Deve-se imaginar o que pode acontecer em paises como o Brasil, em que a economia vem enfrentando problemas há trinta anos e o controle do estado é disputado por interesses os mais diversos. Resta, apenas, confiar, em que o povo brasileiro continue implantando seu projeto cultural à revelia das elites e do estado.

A política econômica da última e da presente década, responde à mesma crise do estado brasileiro. Assim como o “Fome Zero” e outros projetos, a “Ação Afirmativa” representa uma política social “focada”. Como tal procura atingir uma parcela limitada da população transferindo-lhe algum bem ou serviço considerado essencial. Tais iniciativas, se desracializadas, fariam sentido como complemento a uma política econômica ampla voltada para o desenvolvimento econômico, para o emprego e para a inclusão social. Não, em paralelo, como compensação a uma política econômica geradora de baixo crescimento e alto desemprego. A melhor política social é uma política econômica geradora de emprego e renda.

O discurso hegemônico do mercado ou da “raça” no Brasil atual resulta da alienação de suas elites frente à nação e ao povo e à disseminação de valores originários da matriz cultural norte-americana.

IV – Racismo e Segregação na Cuba Pré-Revolucionária

O sistema de relações entre negros e brancos em Cuba também decorre do papel político central da cultura norte-americana. Em um primeiro momento histórico, em imitação (como no Brasil de hoje) e, posteriormente, em desafio e oposição ao padrão norte-americano.

Cuba formou-se como uma economia de “plantation”, apoiada na escravidão africana, voltada à produção de cana de açúcar e tabaco (10). Daí, o surgimento de uma elite nativa local, que liderou o processo de independência. Com a escravidão foi incorporado um importante contingente negro e mestiço à população cubana. Cuba foi o penúltimo país do mundo a abolir a escravidão – o último foi o Brasil

Até meados do século XIX, Cuba repetia, de forma muito próxima, o sistema de plantation escravocrata como o encontrado no Brasil, no Nordeste canavieiro ou no Rio de Janeiro e São Paulo das fazendas de café. Importante diferença para o sistema de “plantation” do Sul dos Estados Unidos originava-se da aceitação do papel do mestiço, que em Cuba, como no Brasil, era (e é), freqüentemente classificado como branco. Embora o sistema espanhol de segregação étnica pudesse ser mais rígido do que o português, como se observa no caso das populações indígenas do México ou dos Andes, o das áreas de plantation, como da Colômbia, Venezuela e Cuba aproximava-se do brasileiro.

O sistema colonial espanhol tinha características próprias, como, por exemplo, a formalização da categoria “branco”, por meio de documentos oficiais. Como no Brasil, eram, também, adquiridas cartas de alforria para escravos, mas, além disto, podiam ser comprados documentos oficiais que atestavam que um determinado indivíduo era “branco”. Tais cartas eram especialmente úteis para os filhos mulatos de fazendeiros ricos. Havia um limite na tonalidade da cor da pele para a concessão desses documentos, pois não eram concedidas aos absolutamente negros. Desta maneira a identificação formal entre a cor de pele negra e a situação de escravo parece ter sido mais acentuada na América Espanhola do que na Portuguesa. Estaria aí, o maior “orgulho de raça” dos espanhóis, identificado por Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. Já no Brasil, por inexistir formalmente tal associação, pode ser levantada a hipótese de uma maior “cegueira” quanto à cor da pele do escravo, o que aproximava a percepção da escravidão à tradição européia clássica ou romana (11). Em favor desta tese, corre o fato de que, mesmo hoje, a escravidão existente na Amazônia brasileira não se explica pelo racismo, mas representa uma forma de violência decorrente de uma enorme desventura econômica, o que a leva a atingir, indistintamente, brancos, negros e índios.

A situação étnica em Cuba começa a se diferenciar do padrão latino-americano, inclusive daquele da América hispânica, em meados do século XIX, já devido à influência cultural dos Estados Unidos, maior do que no restante do Continente. Com a independência em 1898, a história cubana passa a ser indissociavelmente vinculada à história norte-americana. Cidadãos norte-americanos compraram terras e engenhos na ilha e desenvolveu-se uma intensa aproximação cultural entre Cuba e os Estados Unidos. Operários cubanos estabeleceram-se nos Estados Unidos, especialmente em Tampa, na Florida, onde se implantou uma indústria de charutos, até hoje em funcionamento. A elite profissional nativa composta, principalmente, de advogados, médicos, gerentes, servidores do estado, proprietários rurais e empresários, iniciou um processo de intensa aproximação com a nova elite norte-americana que se estabelecia na ilha.

Esta nova elite estrangeira nunca se “cubanizou”, mas, ao contrário, devido à proximidade com seu País, via na ilha uma espécie de extensão geográfica ou fronteira econômica e uma espécie de playground para adultos, sem as restrições norte-americanas referentes a bebidas alcoólicas (especialmente, no período da lei seca), controles de tráfico internacional de armas ou formas escancaradas de turismo sexual. Não é de se estranhar que a Cuba republicana tenha se transformado em um território livre para a Máfia.

Os norte-americanos com interesses econômicos na ilha, a viam como um espaço para lucros rápidos e máximos, lavagem de dinheiro e exercício psicológico do papel de “bwana”, inventado pelos ingleses. Todo e qualquer cubano, rico ou pobre, branco ou negro, era (e ainda é) classificado como “não branco”, com toda a carga de preconceito que o termo acarreta na semântica do inglês norte-americano. Isto não impediu que a elite profissional e econômica nativa passasse a ver o mundo da forma que os novos senhores coloniais o viam, em um fenômeno típico de alienação das elites colonizadas. Era uma forma de se aproximarem dos colonizadores e tentarem se libertar do estigma associado à latinidade miscigenada.

A unidade dos cubanos nas guerras de independência iniciadas nos meados do século XIX contrabalançou a influência da visão de “raça” norte-americana e atenuou a oposição entre grupos definidos por critérios “raciais”. Era negro um dos heróis e líder da guerra da independência, o General Antônio Maceo. A iconografia típica do soldado “mambis” (“vilão”, o correspondente ao nosso “farrapo”), característico de uma das guerras da independência, era a de um negro portando um machado ou um facão como arma.

Em começos do século XX, após a independência, conquistada tardiamente em 1899, e a substituição da Espanha pelos Estados Unidos como poder imperial, surgiram formas de oposição e conflito raciais tipicamente norte-americanas. A organização política e social negra, reprimida com brutalidade nos Estados Unidos daquela época, acontecia, em Cuba, em função de uma “consciência de raça” tipicamente norte-americana. Em Cuba a organização dos negros ao longo de linhas raciais, fez-se, então, possível devido ao prestígio adquirido pelos veteranos negros durante a guerra pela independência. Os negros começaram a criar clubes, sociedades de ajuda mútua e publicações específicas. Em começos do século XX foi criado um partido negro, o Partido Independente de Cor (PIC), para a defesa dos negros contra a crescente maré racista que acompanhou a independência do país devido à invasão cultural e econômica norte-americana e para defender os interesses de veteranos negros da guerra da independência, excluídos dos benefícios clientelistas que se seguiram à implantação da república.

Havia, porém, um eleitorado negro que os apoiava, tanto é que o governo cubano fez passar uma lei que proibia a organização de partidos ao longo de linhas de “raça”, de classe ou regionais. Foi este, um recurso eleitoral casuísta do Partido Liberal, então no poder, na competição pelo voto negro.

A aprovação dessa lei levou o PIC à revolta, no oriente da ilha, onde a população negra era maior e estava mais bem organizada. Após a já costumeira ameaça de intervenção norte-americana, chegando à mobilização de uma grande força naval e tropas para “proteger cidadãos americanos”, o governo cubano, para impedir a invasão eminente, viu-se obrigado a reprimir a revolta a ferro e fogo. Sucederam-se massacres de negros pelo exército e formaram-se milícias brancas em diferentes regiões do País em um movimento de histeria racial. Apregoava-se a existência de ataques de “bandos de negros” a brancos, suas famílias e propriedades. A violência da resposta branca e suas justificativas encontram um paralelo claro na ideologia e ações prevalecentes no vizinho Sul dos Estados Unidos (12).

O período que vai da revolta do PIC, de 1912, até a vitória da revolução socialista em 1959 foi de crescente racismo à americana, na forma de segregação racial ostensiva. Embora não chegassem a ser incorporados ao corpo legal, os procedimentos discriminatórios eram corriqueiros: em parques públicos havia áreas exclusivas para brancos e negros; hotéis e clubes discriminavam por “raça”; as praias restritas aos hotéis ou clubes que as defrontavam ficavam reservadas aos brancos.

Os dois mais exclusivos clubes da ilha, situados nas suas maiores cidades, Havana e Santiago, teriam reagido á visita do ditador Fulgencio Batista, não pelo fato de ser ditador, mas pelo de ser mulato. No caso de Havana, apagaram todas as luzes, no momento em que entrava no clube, em alusão à sua pele escura. Em Santiago, não havia ninguém para recebê-lo. Um milionário mulato foi obrigado a construir e fundar seu próprio clube, após ver recusada sua candidatura a membro da mais seleta agremiação social de Havana.

A segregação aberta e direta era, entretanto, um fenômeno restrito à elite. Não houve, em Cuba, a formação de guetos, de bairros exclusivamente negros ou exclusivamente brancos à semelhança dos Estados Unidos. Entre os pobres continuou a ocorrer uma intensa miscigenação. Em Cuba, como em outros países latino-americanos os mestiços eram considerados “mulatos” ou “brancos”, ao contrario da América do Norte, onde eram e são classificados como “negros”. Como no restante da América Latina ocorreu um intenso processo de sincretismo religioso e mistura cultural entre negros e brancos. A santeria, culto de origem africana, muito semelhante aos nossos cultos afro-brasileiros, também associa os orixás aos santos católicos. Os santos africanos são quase os mesmos nos dois países, devido à origem comum bantu e yorubá da maior parte dos negros brasileiros e cubanos. Como no Brasil, as religiões de origem africana tornaram-se patrimônio de toda a nacionalidade, sem distinção de cor de pele.

Enquanto o sistema segregacionista da elite republicana de Cuba exprimia sua orientação cultural no sentido dos Estados Unidos, a intensa miscigenação e a disseminação dos cultos de origem africana entre brancos e negros pobres orientava o povo cubano no sentido da tradição latino-americana, à semelhança do que pode estar ocorrendo no Brasil de hoje.

V – Cuba no Período Pós-Revolucionário

Estudos realizados sobre relações raciais em Cuba, durante o período revolucionário, sendo o mais importante e bem fundamentado, o de autoria de Alejandro de La Fuente (2001) , apontam para um virtual esquecimento de “raça”, enquanto representação, até 1989 (13).

Foi abolida a segregação e os negros foram sendo assimilados de maneira efetiva ao processo econômico e político, à medida que a economia crescia a taxas muito altas. Foram os principais beneficiários da radical redistribuição de renda ocorrida após a revolução e das oportunidades então abertas em educação e emprego.

Em 1989, o fim da União Soviética representou uma catástrofe nacional para Cuba. Sua economia era absolutamente dependente da soviética, cujos subsídios ao País variavam de quatro a seis bilhões de dólares anuais (algo como 20 a 40% do PIB), o que fazia da ilha um fornecedor especializado de açúcar para os países da Europa de leste. Cessou a produção industrial, quase toda dependente de bens importados. O País, repentinamente, viu-se sem energia, a indústria sem matérias primas e as pessoas sem comida em casa. A falta de água e os “apagões” tornaram-se parte do cotidiano. De 1989 a 1994, Cuba atravessou o chamado “período especial”, caracterizado pela crise aguda na economia. As estimativas apontam para uma queda súbita de, pelo menos, 40% do PIB. O bloqueio econômico norte-americano, ao qual se associava a maior parte dos demais países latino-americanos, impedia a importação de bens indispensáveis à vida cotidiana, que de resto, Cuba não tinha como comprar por falta de divisas

A resposta cubana deu-se por intermédio da liberação da remessa de dólares pelos cubanos de Miami para os seus parentes e amigos que vivem na ilha; pela reativação do turismo como principal vocação econômica; e pela prestação internacional de serviços, como o envio de 15.000 médicos de família à Venezuela, cujas atividades são trocadas pelo petróleo tão importante para a vida cubana. Há alguns outros desenvolvimentos recentes, como a exploração conjunta com a China das grandes reservas de níquel da ilha, que devem situá-la como o mais importante fornecedor internacional desta matéria prima. Há, ainda, indícios promissores na prospecção de petróleo.

Em que pesem tais avanços, a situação ainda é de muita carência na ilha. Procura-se distribuir a riqueza por igual e as diferenças entre os maiores e menores salários são muito pequenas. A economia é quase toda estatal e o desemprego baixíssimo (2,5%). Além do salário, todo o cubano ainda tem direito a uma cesta básica, ao acesso universal ao excelente sistema educacional, além de uma assistência de saúde integral, gratuita e também de primeira qualidade(14). A contrapartida à distribuição por igual da carência é a ausência de indigentes ou de pobreza absoluta.

Há duas formas de complementação de renda na ilha que afetariam diretamente as relações raciais, para autores como De la Fuente (op. cit.):

1º – atividades relacionadas ao turismo: oferecem a possibilidade de ganhos absolutamente extraordinários, devido às gorjetas, consideradas um direito e solicitadas sem maiores inibições. Os ganhos com gorjetas podem ir de U$ 50,00 a U$ 1000,00, perfazendo uma diferença de, eventualmente, mais de cem vezes no orçamento doméstico. Por isto, empregos formais no setor turístico, de forma especial, os de interação direta com o turista, como os de carregador de mala de hotel, porteiro, garçom, camareira e motorista de táxi são extremamente disputados.

2º – remessas do exterior: hoje as remessas do exterior, principalmente dos Estados Unidos, representam uma importante fonte de renda. Calcula-se em cerca de novecentos milhões de dólares, as remessas para a ilha. Valores considerados pequenos nos Estados Unidos, de U$ 100,00 ou U$ 200,00 podem significar uma multiplicação de dez ou vinte vezes na renda familiar.

Os cubanos de Miami são coletivamente classificados pelos norte-americanos como “não brancos”. Porém, conforme o Censo de população norte-americano, 83,5% se auto-identificam como “brancos”. Daí que as remessas realizadas para a Cuba, destinadas a parentes, atinjam, principalmente, os brancos residentes na ilha, o que contribuiria para o ressurgimento do racismo. A abertura para o turismo estaria, também, levando ao retorno do racismo a Cuba, pois os cobiçados empregos nos hotéis e restaurantes estariam, em sua maioria, nas mãos de brancos. Levariam a esta concentração, as redes informais de parentesco e o racismo dos gerentes estrangeiros, que em nome do critério da “boa aparência” selecionariam, tão somente, brancos para trabalhar em seus hotéis.

A diferença de renda seria “explicada” pelos brancos, pela via do racismo. Há, também, a queixa da baixa visibilidade dos negros nos meios de comunicação e na vida artística. Em Cuba, ainda de acordo com esses autores, haveria uma grande resistência a se discutir o assunto e os cubanos seriam treinados a ser “color blind”, pois a exagerada ênfase nas diferenças raciais seria entendida como contrárias à idéia republicana de nação. Daí que se critique o estado cubano por não denunciar o ressurgimento do racismo e tomar medidas no sentido de compensá-lo.

Tais estudos parecem ignorar que posição cubana de reduzir a importância do critério racial resulta de um cálculo político lastreado por uma visão da história e da cultura. A crítica que se pode fazer a essas análises, que apontam para o ressurgimento do racismo na ilha e para a apatia do estado neste particular, não se origina de sua fundamentação empírica, mas da escolha do próprio conceito de “raça” na identificação do que é significativo na vida social. O que importa é saber quais são as categorias “êmicas”, isto é, dotadas de significado para o observador, antes de realizar sua análise.

Cuba foi, no passado, um território privilegiado para a expansão norte-americana na América Latina. Hoje, é o único país da América Latina que resiste frontalmente à influência política e cultural dos Estados Unidos. A revolução cubana foi uma revolução cultural. A nova elite revolucionária assumiu a visão popular latino-americana, que minimiza “raça”, como critério de classificação dos seres humanos, embora reconheça a existência de toda uma carga de preconceito, que deve ser combatida e gradualmente superada.

Na América Latina, o nacionalismo, freqüentemente associado a algum tipo de proposta socialista, transformou-se na principal forma de resistência contra a matriz política e econômica norte-americana. Cuba é o único país das Américas em que esta posição tem se mantido dominante. No ideário hoje prevalente na ilha, que combina nacionalismo e marxismo, a idéia mestra continua sendo a fórmula republicana de “um só povo, um só estado e uma só nação”. A força da associação do socialismo com o nacionalismo republicano foi um fator fundamental explicando a sobrevivência do sistema político cubano, após a queda da União soviética. O internacionalismo traz, porém, uma nova dimensão, pois o povo e a nação seriam expandidos a outros territórios além do cubano. O marxismo é combinado com idéia da “Nuestra América”, a América Latina do herói da independência cubana Jose Martí.

O marxismo clássico sempre foi incapaz de tratar adequadamente as diferenças étnicas, em que pese a tentativa de Lenin na “teoria das nacionalidades”. Embora os movimentos étnicos possam enfraquecer a classe trabalhadora, dividindo-a, podem, em outros momentos, consistir em poderoso fator de mobilização revolucionária, especialmente quando a luta étnica reivindicatória se confunde com os chamados interesses “antiimperialistas”. É este o caso da presente mobilização dos índios do altiplano boliviano em favor do monopólio estatal da água, do gás e do petróleo. Entretanto, sempre há a possibilidade de inclinação de movimentos étnicos para a direita, na medida em que se voltem contra outros grupos étnicos, étnico-regionais ou ainda, sirvam para mobilizar a população de um estado nacional contra a de outro estado nacional.

O fim do preconceito racial é entendido pelos revolucionários cubanos como uma condição para a realização da justiça, para a unidade da classe operária e da unidade nacional. Em Cuba, como foi visto, uma das primeiras medidas revolucionárias foi a abolição de toda e qualquer forma de discriminação social em parques, clubes, restaurantes etc.

As diferenças de renda decorrentes das remessas do exterior, um dos fatores que estariam levando ao ressurgimento do racismo, podem ser analisadas sob o corte étnico, mas este não este não é o mais importante. O problema central são os efeitos na renda que efetivamente ocasionam na sociedade, afetando brancos e negros. Como a elite era mais “branca”, as remessas são, principalmente para brancos, o que não impede que uma vasta quantidade de brancos seja excluída dessa mesma fonte de renda. A solução adotada foi a taxação das remessas para sua redistribuição entre os mais pobres, brancos ou negros. Recentemente, o dólar norte-americano foi taxado em 10% e o peso valorizado. Naturalmente, tais medidas tributárias têm um limite, pois as remessas do exterior representam um importante aporte à combalida economia cubana.

No que diz respeito ao racismo dos gerentes de hotéis estrangeiros e cubanos, há medidas pontuais que podem ser tomadas, o que não situa o racismo como problema central à sociedade cubana, como procuram evidenciar alguns dos estudos recentes sobre Cuba (15). Não é uma coincidência que a maior parte desses estudos sejam originários de universidades norte-americanas, onde a categoria “raça” é central no dia a dia da política e do cotidiano. É hoje, difícil, a realização de estudos empíricos sobre qualquer país latino-americano, em qualquer universidade norte-americana, em que “raça” não represente um objeto fundamental. Este é um verdadeiro paradigma para o conhecimento antropológico e sociológico da América Latina, que gera a implicação de, por comparação implícita, tornar a situação norte-americana normal ou desejável. É uma epistemologia consistente com um sistema de poder.

Cuba tem um projeto cultural ancorado no socialismo, e no que diz respeito à etnicidade, na cultura tradicional latino-americana conservada pelos mais pobres, mesmo nos piores momentos da república. Por isto, à diferença do estado brasileiro não implementa políticas governamentais de “ação afirmativa” contrarias ao projeto cultural nacional, pois o socialismo é, em si mesmo, a própria “ação afirmativa”, em larga escala, para a toda a sociedade. Não há a importação acrítica da matriz norte-americana, pois se sabe que representaria o fim do projeto político e cultural nacional.

Isto não significa que deva ser negada a existência do preconceito contra negros. Importante nesta direção é a constante vigilância da sociedade, por meio de movimentos sociais. Existe em Cuba um movimento chamado “Color de Cuba” (“Cor de Cuba”) que, associado a outras organizações semelhantes, poderá desempenhar este papel. Deve-se, porém, acreditar que, como aconteceu na ilha na década de 80, “raça” poderá voltar a ser um “não problema”, em função de novas oportunidades abertas a todos com a recuperação da economia cubana.

A posição de Cuba frente ao “multiculturalismo” replica a resistência do seu projeto cultural nacional a aspectos políticos e econômicos da “nova vulgata” identificada por Bourdieu e Wacquant, mesmo porque a política e a economia são manifestações da cultura, enquanto conjunto de significados e valores.

VI – Conclusões: Relações interétnicas nas Américas

Ao longo deste trabalho identificamos dois modelos históricos de relações interétnicas na raiz européia: um primeiro, o modelo imperial, dinástico, associando um único estado a diferentes nações e povos; um segundo associando um único estado a um único povo e a uma única nação.

Espero ter ficado suficientemente claro que a diversidade cultural é possível em ambos os modelos, alterando-se, porém, o sistema de classificação afetivo e os padrões de solidariedade entre os povos e nações, cujas fronteiras são, sempre, artificialmente desenhadas. O modelo republicano, associando um povo a uma nação ea um estado pressupõe uma padrão de solidariedade, de afeto, cujo limite é o próprio limite do estado nacional. Já o modelo imperial reunindo em um único estado vários povos e nações, ressalta a tolerância mútua entre povos que se consideram diferentes, mesmo que não sejam tão “diferentes”.

Os dois modelos de relações interétnicas representam um projeto político-cultural implantado pelos diferentes estados nacionais.

No caso norte-americano, após a tentativa histórica de se implantar o modelo republicano, optou-se pelo imperial, especialmente em relação a populações consideradas racialmente diversas. Nos Estados Unidos, barreira insuperável é a da “raça”, aparecendo o “multiculturalismo” como resposta intelectual e política, gerando um novo projeto cultural, na tradição maior do modelo imperial.

Cuba, até o século XIX seguia o sistema geral das colônias hispânicas e portuguesas nas Américas, caracterizado pela miscigenação e por um continuum na classificação racial. No século XIX e até a revolução cubana, no século XX, dada a influência da matriz cultural norte-americana sobre a elite cubana, desenvolveram-se na ilha formas de racismo típicas do sistema norte-americano e, em especial, do Sul dos Estados Unidos, com segregação física dos classificados como negros.

Entretanto, o povo cubano, ao contrário da elite,continuou implantando um projeto cultural autônomo, na tradição latino-americana, com miscigenação, sem segregação. Este projeto cultural viria a ser vitorioso com a revolução cubana, que eliminou todas as formas de segregação racial e tornou o critério de raça pouco relevante na classificação dos indivíduos.

No Brasil o projeto cultural português voltado para a miscigenação, na tradição latino-americana, iria se afirmar enquanto o País se afirmava como entidade política. Nas últimas décadas, com a globalização, a disseminação da matriz cultural norte-americana, a fragilização da identidade nacional e a dependência política brasileira, têm surgido iniciativas no sentido de se implantar uma política orientada pelo multiculturalismo, com o resultado líquido de tornar “raça”, no sentido biológico/popular norte-americano, um critério relevante de distinção entre seres humanos no País.

REFERÊNCIAS

Anderson, Benedict. Imagined Communities. London/New York:

Verbo, 1983.

Bourdieu, Pierre e Wacquant, Loïc

1998 – “Sur les ruses de la raison imperialiste” in Actes de , 121 (122) 109-118.

Recherche em Sciences Sociales

Castañeda Fuentes, Digna e Brock, Lisa (eds.)

1998 – Between Race and Empire. Philadelphia: Temple University

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Moore, Carlos –

1988 – Castro, the Blacks and Africa. Los Angeles: Center For Afro-

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Ramos, Alcida Rita

1996 – “Nações dentre da Nação, um desencontro de ideologies in

George C. L. Zarur (ed) Etnia e Nação na América Latina.

Washington:OEA

Sansone, Livio

2003 – Blackness Without Ethnicity. New York: Palgrave Macmillan.

Tannembaum, Frank

1946 – Slave and Citizen: New York: Vintage

Zarur, George C. L.

2003- A Utopia Brasileira. Brasília: FLACSO/Abaré

NOTAS

1- Este trabalho resulta das pesquisas do autor sobre o pensamento social brasileiro, norte-americano e cubano. Foi o primeiro brasileiro a realizar pesquisa de campo nos Estados Unidos, tendo-o feito entre negros e brancos. Esteve recentemente em Cuba, pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) onde entrevistou vários pesquisadores e professores universitários, além de ter realizado dezenas de entrevistas com brancos e negros em diferentes locais da ilha..
2- Uma experiência extrema e mal sucedida, na busca de representação proporcional no corpo político, é o do Líbano, com sua representação política proporcional às três principais religiões, cristãos, sunitas e xiitas. Hoje, este modelo está defasado, pois os cristãos não mais representam a maioria da população libanesa, como quando da época de sua implantação pelos colonialistas franceses.A guerra civil no Líbano resultou da inconformidade dos mulçumanos, com o critério de representação proporcional.
3- Caso do conservador “moderno” Ministro do Interior Nicolas Sarkozi. Ver Le Monde de 24/06/2005. Outros como Jacques Chirac procuram soluções alternativas.
4- O autor deste artigo orgulha-se de seu doutorado na Universidade da Florida, sob a orientação de Charles Wagley, de ter sido um dos primeiros antropólogos brasileiros a receber um doutorado americano e ser o primeiro antropólogo brasileiro a realizar pesquisa de campo nos Estados Unidos, invertendo as relações tradicionais de poder entre a sociedade do antropólogo e a sociedade estudada.
5- Inicialmente com os Villas-Boas e Darcy Ribeiro, nos anos 50.
6- A tentativa de alguns em falar de “nações indígenas” fora da nação brasileira foi objeto de um brilhante artigo de autoria de Alcida Ramos (in Zarur, 1991)
7- ver Sansone, 2003, pg. 83
8- Desconhecem, por certo, o caso hutu/tutsi, no Grandes Lagos Africanos. A diferença era pequena no final do Século XIX, até que o colonizador belga resolveu estabelecer a diferença na carteira de identidade entre os dois povos, oferecendo-lhes oportunidades diferentes. O resultado, um século depois foi a tragédia da guerra entre hutus e tutsis, que já custou dois milhões de vidas.
9- Em 1974 realizei pesquisa de campo entre negros e brancos sulistas norte-americanos. Na ocasião colhi dados a este respeito. Nestes trinta anos, não se alterou esta posição da maioria da população negra e de parte da população branca, conforme pude perceber em muitas viagens posteriores aos Estados Unidos.
10- Os índios cubanos foram exterminados nos primeiros anos da colonização.
11- Para uma comparação entre os sistemas escravocratas da antiguidade e o brasileiro, ver Frank Tannembaum (1946).
12- Entretanto, historiadores cubanos registram que o apoio ao PIC deu-se de forma apenas marginal entre negros que, assim como a maior parte dos brancos pobres, viam a organização como um desafio à identidade nacional, pois, no partido, a idéia de raça prevalecia sobre a de nação.
13- Muitos estudos sobre Cuba, inclusive os que abordam a questão racial, são manifestações de propaganda política passional. É grande a quantidade de artigos enfaticamente a favor ou contra. Há, mesmo, trabalhos acadêmicos onde a visão da sociedade cubana chega a ficar severamente distorcida devido ao não escondido furioso viés ideológico/político/passional. Este, evidentemente, é o caso do livro de 1988. (financiado pela Fundação Ford), de autoria de Carlos Moore, intitulado Castro, the Blacks and África. Há, porem, pelo menos dois bons recentes livros sobre a situação racial de Cuba, que merecem a atenção acadêmica. Um é a coletânea editada por Lisa Brock e Digna Castañeda Fuertes “Between Race and Empire” (1998) sobre a influência recíproca de negros norte-americanos e de cubanos ao longo da história. Outro livro que merece lembrança é o de autoria de Alejandro de La Fuente “A Nation For All ” (2001).
14- Cuba aplica 30% do PIB em gastos sociais. Esta em primeiro lugar, neste quesito, em toda a América Latina.
15-Inclusive o supracitado de De la Fuente.