Fotografia em Viagem

Melhor é viajar fotografando, pois somos promovidos a criadores de cenas. Descortinamos um mundo oculto de imagens novas e belas. Estamos sempre a procura do melhor ângulo mesmo com o sacrifício do registro fiel. Em viagem, torno-me fotógrafo, pelo período que ela durar.

Pé na estrada. Levo sempre minha Cannon Rebel XT, um pouco ultrapassada, mas, para mim, está ótima. O fotógrafo em viagem vai e volta para o mesmo lugar, ao redor da mesma casa. Move-se em círculos na mesma praça, em busca do ponto certo. Faz sua paciente companheira esperar enquanto troca as lentes ou anda para frente e para traz. Pula da cama de madrugada, à espera da luz clara do mais cedo da manhã. Dorme com a imaginação acesa para as cenas do dia seguinte. Isto acontece principalmente nas cidades, onde a velocidade de aparecimento de novas cenas é incrível. Mais das cidades históricas, onde um passo para o lado pode criar um mundo novo (exemplos abaixo). Já na paisagem natural, o aparecimento de novas cenas é menor. Dá para esquecer um pouco a câmera. Não muito.

Cidade Histórica:Trinidad, Cuba

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Foto: George Zarur

Cidade Histórica: Pelourinho

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Foto: George Zarur

 

Mas o fotógrafo deve, também, deixar a câmera de lado, de tempos em tempos na viagem, pois música não se fotografa, e nem por isso se deixa de ouvir. Andar e ver, sem fotografar, simplesmente passear, é muito bom. O peso das lentes e da máquina fotográfica atrapalha o passeio. A câmera dependurada no pescoço é a marca do turista. É sinal poderoso que aponta quem pode ser assaltado ou assediado por mendigos ou candidatos a guia, especialmente nas cidades históricas.

Cidade Histórica: Pelourinho – Salvador – Pelourinho.jpg

Foto: George Zarur

Se a câmera não é para ser carregada todo o tempo, como fica aquela inesperada cena, como a da senhora que teve a bondade de se deixar retratar no calçadão de Maceió? A câmera de 5 MP (lentes Karl Zeiss) de meu celular funcionou nessa emergência e não foi assim tão mal. O registro em si, interessava mais do que a qualidade da imagem, que ficou aceitável (ver figura). Procuro não levar minha câmera, mas já tirei boas fotos de praia com a câmera do celular. Seria melhor com a outra, mas o sentimento de perda diminui quando as condições de luz são excelentes. A falta de zoom ótico é um problema, mesmo nas melhores câmeras de celular, mas tirando isso, a capacidade da maior parte das câmeras pequenas é quase a mesma. A regra é andar sempre com algum tipo de câmera que caiba no bolso e estar sempre pronto para surpresas.

Senhora em Maceió

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Foto: George Zarur

A fotografia não se esgota no registro. Chatíssima é a fotografia de turistas para provar que estiveram em algum lugar famoso. Primeiro, o marido tira a foto da mulher em frente ao monumento, acidente natural ou obra de arte, que pode ser o Corcovado, a Monalisa, a Torre Eiffel ou um quinquilhão de outros marcos. Depois, a mulher tira do marido. Por fim, o garçom ou um transeunte fotografa o casal que, nesta ocasião, sempre exibe um sorriso pasteurizado para demonstrar como é poderoso por ali estar e quão feliz está por ter viajado. Os japoneses são os maiores mestres nesse tipo de exibição.

Até a década de 80, amigos e parentes eram submetidos à tortura de longas seções de slides, em que a pessoa falava longamente sobre si mesmo ou sobre o casal. A felicidade requeria testemunhas…

O snapshot turístico é a realização acabada do estereótipo da felicidade. Como todo estereótipo, falso, pois a felicidade que retrata é a do poder do consumo, de estar “ali” e poder provar que “lá” esteve, mesmo que a beleza e o interesse histórico e afetivo do local nada digam ao visitante. O snapshot turístico integra o processo de autoconstrução da imagem do indivíduo, do casal ou da família. A associação com um objeto famoso ao fundo, um ícone artístico, cultural ou natural exprime a muita humana vontade de poder sobre a eternidade, como se a pessoa ou as pessoas retratadas fossem eternas e relevantes, da mesma forma que a paisagem de fundo. O tempo é subjugado na fotografia.

Há, porém, formas melhores de se eternizar o carinho e os momentos felizes do casal de turistas. Nada errado com a intenção de usar a imagem para que o amor vença a morte, mas o problema é que se tem que pagar em moeda por isto. Os serviços turísticos são mercadorias, espetáculos pessoais adquiridos nas agências de viagem. Pesquisa recente realizada em várias cidades brasileiras demonstrou que, em Belém, por exemplo, a maioria das mulheres prefere uma boa viagem de férias ao sexo. Talvez prefiram o ideal do amor eterno, como retratado na propaganda dos pacotes turísticos, ao contacto suado com o parceiro.

O snapshot é mesmo chatíssimo. Pior é aquela fotografia das pessoas da família abraçadas ou em grupos em mesas, como nos aniversários do filho caçula. Nos casamentos, o registro fotográfico, uma reportagem social, deve, sempre, ficar a cargo de profissionais, para que os participantes da festa possam se divertir. Mas, mesmo chato, o registro doméstico de eventos familiares tem uma função importante na construção da identidade familiar. Cria-se nos álbuns de fotos de família um enredo, sempre mais feliz do que o real, que manifesta afeto e vontade eterna dos laços de amor na família. Por isto, a fotografia de família deve ser respeitada. Mostrar a fotografia dos filhos ou da esposa é declarar amor pela pessoa retratada e amizade ao interlocutor. Por isso, também, os funerais nunca são fotografados, ao contrário do que acontece com os nascimentos, aniversários e casamentos.

Os exageros devem ser controlados. Conheço uma mulher tão bonita quanto tímida, que, em festas de aniversário esconde seus lindos olhos verdes atrás de uma câmera. Um de seus netos, por muito tempo, acreditou ser a máquina fotográfica parte daquele rosto querido. A pobre criança entrou em pânico, ao descobrir que, de repente, caíra o órgão metálico preso ao olho da vovozinha!

Devido ao risco sempre iminente da banalidade, o retrato me parece a forma mais difícil de fotografia. Como interpretar a pessoa, no olhar, no gesto, ou em algum detalhe que realmente diga quem ela é? Como jogar com luz, técnica e sensibilidade para ver e sentir uma pessoa. Como evitar o registro simples e corriqueiro e fazer algo mais interessante?

Se a fotografia vai além do registro, a viagem fotografada de terras estranhas transforma radicalmente a visão que se tem das coisas, das casas e das pessoas. Ficam diferentes sob o “olhar” do fotógrafo. Cria-se a cena com forma e cor. Fotografia irmã da pintura: metáfora fácil, mas adequada. Mais ainda quando se considera o uso da cor e da luz pelo fotógrafo na edição digital da fotografia. O processamento da fotografia colorida nunca foi território do fotógrafo pré-digital. Havia o quarto escuro doméstico mobiliado com impressionantes ampliadores, que funcionavam muito bem, para a revelação da fotografia analógica em preto e branco. Entretanto para o processamento doméstico da fotografia colorida, foram lançados “kits” tão caros quanto limitados, que convenciam os infelizes que os compravam da inevitável dependência de laboratórios comerciais.

Fascinante é a questão do foco. Não do foco em si, mas da seleção do que interessa fotografar que o foco pressupõe, do que merece atenção e de porque uma dada cena é destacada em sacrifício de outra. O fotógrafo secciona, mas ou menos, a cena, pela escolha da amplitude de sua lente. No processamento, ainda conta com o recurso do corte para fragmentar ainda mais a imagem, e assim, privilegiar um objeto qualquer.

Luz da Manhã: Cena de Estrada – Chapada Diamantina – Bahia

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Foto: George Zarur

Luz da Manhã: Penedo Alagoas

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Foto: George Zarur

Luz da Manhã- Telhados – Pelourinho

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Foto: George Zarur

A prioridade que o fotógrafo empresta a uma cena, a um rosto, uma parede, uma janela, ou a um conjunto de casas, pessoas ou prédios, tem a ver com aquilo que chamamos de “intuição” ou “sensibilidade”. Pode exigir decisões muito rápidas, em que não há tempo para estudar a cena. Mesmo porque a primeira seleção de cena ou de pedaço de cena é, freqüentemente, realizada no momento do acionamento do obturador. Para o fotógrafo que está a explorar uma cidade, a condição de luz ideal ou um sorriso bonito podem durar segundos. Este instante de disparo da câmera resume toda a “cultura artística”, o preparo do fotógrafo. Manifesta, também, toda a intuição estética que resulta de sua experiência de vida.

Luz da Tarde: Olinda – Pe

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Foto:George Zarur

Luz da Tarde: Navegando no São Francisco

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Foto: George Zarur

Luz da Tarde: foz do São Francisco

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A possibilidade de fragmentação do mundo tal como se apresenta aos olhos humanos, a apreensão da cena interna à cena, congela não apenas o tempo daquele segundo em que câmera foi usada, mas, também, o espaço focado à luz única do momento. As melhores luzes, a suave manhã e a trágica tarde fazem um brevíssimo pouso em nossa terra antes de se esconderem por horas sem fim. A fotografia cristaliza o efêmero, décimos de segundo em um pedaço de mundo iluminado.

Seleção de Objeto: corte de foto. Times Square, NY, antes do corte:

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Foto: George Zarur

Seleção de Objeto: corte de foto. Times Square, NY, após o corte:

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Foto e edição: George Zarur

A fotografia digital democratiza a arte. Amplia a dimensão criativa de qualquer pessoa. A semelhança é com tribos indígenas, onde a especialização é pequena e a criação artística é aberta a toda população. Há, nessas sociedades, os grandes mestres e as grandes obras reconhecidas por formas sociais de consenso, mas todos dominam a técnica. Como a maravilhosa plumária dos índios Urubu-Kaapor (retratada no também lindo livro de Darcy e Berta Ribeiro) ou a cerâmica dos índios Waurá do Xingú. Todas as mulheres Waurá são ceramistas, algumas reconhecidas como excelentes. Ou como as bonecas de cerâmica dos Karajá. A fotografia digital tende a ser a forma de arte característica da civilização do século XXI.

A fotografia digital democratiza a criação, mas cria um oceano de informação difícil de ser gerido. Mesmo para quem usa a câmera para o despretensioso fim da memória doméstica, o excesso de imagens pode ser fatal. Pode induzir, devido à facilidade de uso, à produção da mediocridade, pela via da autoconstrução satisfeita da imagem pessoal no snapshot. Para usar uma expressão em moda nos meados do século XX, a fotografia pode ser uma forma de alienação.

Porém, uma grande quantidade de fotos do mesmo objeto é um recurso reconhecidamente eficaz para a boa fotografia. Muitas imagens, sob ângulos ou condições de luz e exposição diferentes aumentam, em muito, a probabilidade de “acerto”. É uma mera questão estatística. O custo zero da imagem devido à eliminação do filme torna possível estender esse recurso a um limite inimaginável no passado. O custo zero de processamento, com o uso Photoshop ou programa similar, também contribui para que um grande número de fotos seja financeiramente viável. Como, também, o pré-processamento, com a visualização da imagem, freqüentemente, na própria câmera.

O problema é “après”, como dizia Madame Jacobina, minha professora de francês no velho colégio Andrews da Praia de Botafogo. É necessário ser cruel e assassinar, sem dó nem piedade, as imagens que não parecem ser muito acima da média. As sem esperança já devem ser eliminadas na própria câmera. Depois, as médias devem ser selecionadas no computador e exterminadas. A classificação por estrelas pode ajudar muito. Feita a seleção, as imagens sobreviventes organizo por pastas, pelo local e ano em que foram obtidas. A taxa de aproveitamento fica entre 3 a 5%. Ainda abro uma pasta com as favoritas de cada viagem e faço a seleção sobre seleção, juntando as poucas que, no meu humilde julgamento (em causa própria), reputo excepcionais. São as campeãs de toda a vida.

A decisão sobre eliminar ou preservar as imagens é um processo racional de controle e administração da emoção. É “matar” fragmentos de memória para que, em nossa limitada capacidade de armazenamento biológico, possamos aprimorar e aperfeiçoar as que interessam. É um processo que dói, pois o natural é que queiramos guardar todos os registros de nossas emoções. Sentimo-nos como divindades antigas que escolhiam quem vive ou morre.

Daí vem o argumento de que cada foto com um mínimo de potencial pode ser trabalhada e, eventualmente transformar-se “naquela” imagem. O argumento é fraco, pois a possibilidade do fotógrafo se perder em milhões de desvios afasta-o do que, sem dúvida, vale a pena trabalhar. Muito se deve perder para ganhar o essencial.

O sacrifício de oceanos de memória vale a pena para que a fotografia nos leve longe, em viagem a um novo país.

2017-11-06T21:35:07-02:00By |Viagem|