Etnia e Nação na América Latina – Volume I / Etnia y Nación en América Latina – Volumen I

ÍNDICE

Apresentação/Presentación

Agradecimentos

Introdução/Introducción

PARTE I

CONCEITOS E PROBLEMAS BÁSICOS/CONCEPTOS Y PROBLEMAS BÁSICOS

El poder de Ias utopías: La sociedad plural en América Latina

Nelly Arvelo-Jiménez

El derecho a Ia existencia cultural alterna

Miguel Alberto Bartolomé

Etnia e nação como figuras da modernidade

Luiz Felipe Baêta Neves Flores

Identidades e nacionalidades latino-americanas no contexto transnacional

Guillermo R. Ruben

Segmentação e grande espaço econômico: O processo de redefinição do estado latino-americano em um contexto de integração transnacional

Lúcio Castelo Branco

PARTE II

ETNICIDADE INDÍGENA/ETNICIDAD INDÍGENA

Nações dentro da nação: Um desencontro de ideologias

Alcida Ramos

Movimientos sociorreligiosos e identidad

Alicia M Barabas

La marcha indígena bacia Ia construcción de una sociedad plural: Etnicidad, nacionalidades y estado en el Ecuador

Segundo E. Moreno Yáñez

Etnicidad, identidad y pueblos indios en Colombia

Myriam Jimeno Santoyo

Cultura, identidad y nación: El caso de Ia tribu mapuche toldense

Isabel Hernández y SilviaCalcagno

INTRODUÇÃO

Este volume reúne os trabalhos apresentados durante a reunião apoiada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre “Etnia e Nação na América Latina”, do Grupo de Trabalho Sobre Identidades na América Latina do Centro Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO), realizada em Brasília em Dezembro de 1992. O evento deu continuidade ao programa de integração das antropologias latino-americanas iniciado em 1987, quando foi criado o grupo de trabalho, que já apresenta uma contribuição original para a antropologia latino-americana. O volume, ora apresentado, é o segundo produzido pelos seus membros. O anterior, intitulado “A Antropologia na América Latina”, foi a primeira obra, em muitos anos, a reunir contribuições de antropólogos de diferentes países do continente e representa uma referência obrigatória para o entendimento do que é e do que pode fazer a antropologia latino-americana.

Outra iniciativa do Grupo de Trabalho foi a organização dos antropólogos do continente. Seus participantes tiveram um papel decisivo na criação da Associação Latino-Americana de Antropologia, em 1990.

O princípio básico do programa, iniciado na reunião de 1987, é o da Antropologia assumir-se como ideologia e participar da construção da idéia de nação na América Latina. A atual crise de identidades no continente exige um redirecionamento dos sistemas ideológicos que as orientam. A Antropologia pode contribuir nesta direção, procurando a verdade (dos finais do século XX), que parece ancorar-se nas contribuições de grupos chamados “minoritários”, para a formação de identidades nacionais e no encontro de faixas de identidade comum entre os diversos povos. Neste contexto, nada mais oportuno do que a discussão de “Etnia e Nação na América Latina”, com vistas à clarificação dos conceitos de multiculturalismo, de “sociedade plural”, e à possibilidade de sua utilização na cultura política latino-americana.

Os trabalhos reunidos neste livro se distribuem em quatro grandes partes. A primeira discute aspectos gerais conceituais e formas de construção de sociedades políticas plurais. Não foram poucas as dúvidas levantadas quanto às possibilidades concretas da existência de sociedades plurais. Nelly Arvelo-Jiménez, por exemplo, demonstrou que as medidas jurídicas voltadas à construção de sociedades plurais, seguidamente, têm-se revelado ineficientes. Um exemplo foi o da ex-Iugoslávia, que contava com um dos mais perfeitos sistemas constitucionais voltados à convivência de sociedades etnicamente diversificadas. As mesmas dúvidas voltaram a se fazer sentir na apresentação feita por Miguel Bartolomé sobre a situação dos grupos indígenas latino-americanos e a negação na prática do discurso igualitário. Já Luiz Felipe Baêta Neves Flores levantou a hipótese de que conceitos como “etnia” e “nação”, enquanto figuras da modernidade, deveriam ser, eles mesmos, questionados.

Na segunda parte cinco trabalhos discutem a etnicidade indígena. Alcida Ramos demonstrou que a aplicação do conceito de nação a populações indígenas brasileiras deve ser reconsiderado. Alicia Barabas, estudando comunidades indígenas mexicanas, descreveu o uso de fatores de ordem religiosa para marcar as diferentes identidades locais. Isabel Hernández e Silvia Calcagno explicitaram os critérios de identidade, selecionados por um grupo local Mapuche argentino e sua situação na sociedade nacional. Myriam Jimeno Santoyo e Segundo Moreno Yánez abordaram a etnicidade indígena e sua inserção nas sociedades da Colômbia e do Equador, respectivamente.

Na terceira parte que trata de etnicidades não-indígenas, Giralda Seyferth estudou a constituição da identidade teuto-brasileira ao longo da história e Marcia Anita Sprandel apresentou os resultados de sua pesquisa sobre as populações “brasiguaias”. Parry Scott explorou o problema da manipulação de conceitos étnicos na resistência à construção de barragens no Brasil e no México.Ruben George Oliven descreveu a acomodação e o “abrasileiramento” dos diversos grupos étnicos do sul do Brasil.

Questões relativas ao pensamento social foram objeto da quarta parte do seminário. Rigoberto Rivera e Paul Little discutiram as identidades nacionais comparadas do Equador e da Bolívia. George de Cerqueira Leite Zarur analisou o pensamento social brasileiro frente à questão da etnia e construção da nação. Roberto Motta discutiu o pensamento social brasileiro em relação ao sincretismo religioso. Juan M. Ossio associou a identidade nacional peruana a símbolos religiosos e Gustavo Lins Ribeiro isolou o personagem Macunaíma, do escritor Mário de Andrade, como um símbolo nacional brasileiro.

Os trabalhos que compõem este volume assumem o conceito de nação como “artefato cultural”. Esta não é uma idéia nova na antropologia. Os estudos clássicos sobre caráter nacional, sendo o de Ruth Benedict sobre o Japão o mais conhecido, partiam desta premissa. Mais recente é a questão da “construção da nação”, uma constante na maioria dos capítulos deste livro. Nesse contexto, o trabalho de Benedict Anderson, que entende a nação moderna como uma “comunidade imaginada”, toma singular importância por sua originalidade, além de possuir outros méritos. O trabalho de Anderson apresenta, entretanto, problemas diversos, que acabam por limitar o seu alcance como guia para o estudo antropológico da nação moderna. Anderson situa a nação atual como sucessora da idéia hegemônica de religião. Contradizendo sua tese, é possível que a primazia dos princípios religiosos tenha sido substituída por muitas idéias diferentes e não apenas pela idéia de nação. Uma delas seria a de ciência. Assim, em artigo anterior, caracterizei a ciência moderna como a herdeira histórica da religião, com sua hierarquia, rituais, exoterismo, crença em milagres e promessa de uma vida futura melhor para a população, pois ambas compartilham a premissa da “busca da verdade” (Zarur 1991).1

Não obstante, Anderson parece estar no caminho certo quando entende a nação moderna como a comunidade imaginada, análoga à antiga comunidade religiosa (também imaginada), para a qual se deslocariam o amor e a lealdade de seus membros. Outro ponto discutível na visão de Anderson é a pouca ênfase que atribui a conceitos como os de “raça” e de “etnia”, os quais não associa diretamente com o conceito de “nação”, que é compreendida como resultante de fatores históricos e geográficos, não étnicos. Este é o conceito jurídico de nação, o de uma sociedade com uma organização política dotada de soberania e identidade próprias. Muitos grupos humanos, entretanto, pensam sua “comunidade-nação”por meiode um critério étnico ou racial. Foi por esta razão que ninguém menos que Oliveira Vianna, paradoxalmente o maior teórico brasileiro do racismo, desfechou uma carga jurídica contra a Alemanha, contra a qual o Brasil se preparava para entrar em guerra. Vianna considerou a Alemanha, uma “etnia politicamente organizada” (“Volskischer Organismus”), negando-lhe o status jurídico de “nação”, que entendia como superior (Vianna 1991, reprodução de artigo de 1940).2

O conceito jurídico, normativo, de nação é diferente do sociológico. Há estados-nação modernos que se organizam por um critério imaginado de consangüinidade. Assim, mesmo hoje, na Alemanha, e até certo ponto nos países anglo-saxões, a idéia de raça é a base da idéia de nação. Na Alemanha, a nação não é definida como a unidade política daqueles que nasceram no território alemão. O termo “Alemães” incluiria todos aqueles que descendem de alemães e têm um nome alemão. Falar a língua é um critério, mas por si só, não define um indivíduo como “alemão”. O critério preponderante é o de “sangue”. Logo, se nação é uma comunidade imaginada, os alemães a imaginam através de um critério racial.

“Etnia” é um conceito antropológico, que denota grupos humanos que marcam sua identidade por diferenças culturais. A própria percepção de pretensas diferenças físicas ou biológicas entre seres humanos é parte da cultura e pode servir ou não para diferenciar etnicamente dois grupos. Assim, supostas diferenças “raciais” podem representar um critério, um caso particular de diferenciação étnica. O número de casos em que “raça”, conceito biológico, é utilizado para este fim, é muito pequeno e circunscreve-se aos últimos séculos. No século XVI, Shakespeare ainda permitia que Otelo, mouro de pele escura, fosse um herói trágico e triste, mas ainda assim um homem importante e casado com uma mulher branca.

“Raça” e “Etnia” têm uma perigosa proximidade semântica. “Raça” implica elementos biológicos como base para diferenças culturais inatas. “Etnia” também implica diferenças culturais, porém sem uma causa biológica. Considerando-se, entretanto, que grupos étnicos são freqüentemente formados e mantidos por regras de casamento endogâmico, podem ser encontradas correlações estatísticas entre “pools” genéticos e tradições culturais particulares, não uma relação de causa e efeito. Além disto, conforme já foi visto, classificações “raciais” são elas mesmas critérios culturais de diferenciação de grupos, ou seja, critérios para traçar diferenças étnicas, da mesma forma que roupas, nomes, rituais, comidas, etc. A diferença é sutil e considerando-se a carga de violência, brutalidade e sofrimento associados a estes conceitos, cuidados no seu uso nunca serão excessivos. Assim é que Charleton Coon, há mais de 50 anos, já alertava para a possibilidade do conceito de “etnia” transformar-se na nova versão do conceito de raça. Oliveira Vianna também se manifestava a respeito, mas para defender o uso do conceito de raça (sd, reimpresso em 1991,68):

“ou muito me engano ou dentro de 20 anos, o fator raça voltará a ser contemplado novamente… Nao, é claro, a raça pura dos pangermanistas alemães, mas já a raça sob a forma de etnia ” .

No momento em que escrevíamos estas páginas, estava em curso o genocídio da população mulçumana da Bósnia Herzegovina, em nome de um processo de “limpeza étnica”. Na Alemanha, acontecimentos recentes nos fazem como que reviver um pesadelo que há pouco julgávamos um capítulo dos livros de história. Em muitos outros lugares do mundo, povos sem terra, sem lar, aguardam um milagre que lhes dêem uma amanhã. De vez em quando uma boa notícia, como a criação do Parque Indígena Yanomami.

Conceitos, como armas, podem ser usados de formas diversas. Que o de “etnia” seja um instrumento para a garantia de terra e da dignidade para populações oprimidas, etnicamente diferenciadas. Que sirva para proteger e fazer-se respeitar a identidade de qualquer grupo humano, por menor que seja e, também, de indivíduos. Que não sirva para construir estados-nação internamente segmentados pelo critério de raça, travestido ou não pelo de “etnia”, mas que seja usado para o fortalecimento da idéia de sociedade plural. E que por sociedade plural, não se entenda sociedades separadas, mutuamente exclusivas e hostis, em um mesmo território, mas aquelas que aceitem a até estimulem a diversidade e a diferença de culturas e indivíduos, como sua riqueza maior. Que tenham por princípio a tolerância frente à diferença e a solidariedade entre os que se consideram diferentes. Aquelas que façam da política de respeito pela diferença, a expressão de um princípio maior, o da igualdade de cada ser humano, em sua dignidade essencial. Para isto é necessário discutir noções como as de etnia e nação. Que este livro ofereça sua contribuição neste sentido.

George de Cerqueira Leite Zarur

2017-10-30T14:32:41-02:00By |Livros|