Ciência, Mito e Sofrimento: Uma discussão do Pensamento Econômico e Seus Efeitos no Brasil

(Publicado pelo Conselho Regional de Economia do Distrito Federal em 2001)

I – PENSAMENTO ECONÔMICO E OUTROS PENSAMENTOS

Os pobres eram, nas sociedades estáveis e hierárquicas de antigamente, induzidos a aceitar sua vida de privações, acreditando nos preceitos religiosos que ensinavam a submissão e o sofrimento como passos indispensáveis à conquista do paraíso. Embora um camelo não passasse pelo buraco de uma agulha e um rico não entrasse no reino dos céus, preferiam esses ingratos, quase sempre, a riqueza à felicidade no outro mundo. Aos pobres, não restavam muitas alternativas, sendo a mais comum o consolo de sua atual penúria pela convivência futura com anjos harpistas em nuvens de algodão.

Nas religiões protestantes, as diferenças de riqueza tomaram um outro tom, conforme demonstram análises que vêm desde Weber. A ênfase no Velho Testamento isolava o “povo escolhido” dos demais e a riqueza representava a evidência concreta da preferência divina. Valores como austeridade, trabalho e poupança passaram a fazer parte do cotidiano dos protestantes como condição para a conquista da riqueza nesta terra e da felicidade no paraíso. De qualquer forma, era necessário o sofrimento agora, a “temperança” hoje, para a salvação amanhã.

É objeto de textos clássicos, como o de Frantz Fanon, a idéia de que os povos colonizados são levados a se pensar como inferiores e, por isso, a aceitar a exploração dos colonizadores. Estes são vistos como a obra-prima da criação divina, racialmente superiores e intelectualmente mais bem dotados. Daí poderem os colonizadores, com a consciência mais tranqüila, usar a violência associada à exploração econômica para manter os povos coloniais no papel subordinado e serviçal. Se a “coisa” fosse bem feita, tão gostoso como a escravidão ou a exploração econômica – do ponto de vista do senhor, é claro – era ser chamado de “bwana”.

Neste último caso, o do colonialismo, o assim chamado “papel ideológico” das religiões era transposto para o terreno da ciência biológica. A superioridade racial era “cientificamente” demonstrada e gerava e justificava uma série de ações políticas, do estupro à escravidão e ao massacre.

No mundo de hoje, dos relativismos e construtivismos, aceita-se, mais do que nunca, a não neutralidade do conhecimento e, especialmente, a não neutralidade do conhecimento que interfere no cotidiano das pessoas. Este, também, responde à posição social do observador. Daí a coexistência legítima de pensamentos alternativos e a tolerância frente à falta de consenso, interpretações e soluções dos problemas sociais e econômicos. A boa teoria, do ponto de vista do estado, é a que induza a ações políticas que melhor atendam ao interesse da coletividade.

Tal discussão ainda não chegou às versões mais comuns do pensamento econômico disseminado no Brasil. Esta atitude resulta de um positivismo tardio, que tem funcionado como uma racionalização do subdesenvolvimento nacional e da pobreza de uma grande parcela da população. Versões distorcidas e grosseiras da teoria econômica vêm sendo impingidas aos brasileiros, por economistas e pela imprensa especializada, para justificar políticas contrárias ao interesse do País. Como nas religiões antigas, prometem a felicidade futura em troca da renúncia à riqueza e de privações; como a biologia racista, assumem a certeza para, com a autoridade da ciência, justificar a desigualdade.

II – CRÍTICA DO PENSAMENTO ECONÔMICO NO BRASIL

Alguns aspectos, dentre muitos outros, podem ser levantados para uma crítica do pensamento econômico e, especialmente, do uso que dele se faz no Brasil. Os exemplos abaixo retratam a infeliz tradução de postulados da teoria em política econômica em nosso País. A transitividade, demasiadamente fácil, entre modelos econômicos e “realidade” caracteriza muito de nosso pensamento econômico e a formulação de políticas.

RACIONALIDADE ECONÔMICA, MERCADOS PERFEITOS E IMPERFEITOS E PRIVATIZAÇÕES

Embora produza formulações didáticas e elegantes ao nível dos modelos, um dos mais graves problemas com a teoria econômica corrente, conforme divulgada no Brasil, é a confusão acrítica entre esses modelos e a chamada “realidade”, ou o “mundo lá fora”. Ignora-se que tais “modelos” são constructos lógicos, formulações ideais para se entender o mundo, e não sua reprodução. A primeira e maior função desses modelos não é a de retratar ou refletir situações concretas, de explicar pela identidade, mas, sim, o de compreendê-las, até mesmo, pela distância, contraste e oposição.

A premissa maior do pensamento econômico é a da racionalidade dos agentes econômicos, ou seja, de que estes fariam escolhas racionais buscando maximizar sua satisfação, seu lucro, etc. Esta premissa, essencial para toda a teoria a econômica, permitiu o desenvolvimento da idéia de mercado e de modelos de previsão de comportamento dos agentes econômicos, na busca desses objetivos.

Em primeiro lugar há que se observar que o chamado “comportamento racional” é uma exceção, não a regra, no comportamento econômico. Curvas de indiferença, decorrentes de processos de escolha racional, podem ser traçadas, retratando algumas situações concretas. Essas situações podem apresentar uma boa proximidade a modelos teóricos em alguns setores específicos como o de “commodities” e, talvez, no caso do consumidor individual, em uma feira livre, onde uma dona de casa, com muito tempo para pesquisar preços, tem ao seu dispor um grande número de vendedores de produtos idênticos. Entretanto, na enorme maioria dos casos, a escolha racional – base da teoria econômica – sofre um infinito número de interferências de fatores, assim chamados, “não econômicos”.

Não é apenas um problema de informação correta sobre a oferta, mas antes, sua manipulação e condicionamentos de ordem cultural, social e de poder. Um exemplo dramático nesta direção é o da propaganda que, ao contrário do que se afirma, não leva à melhor escolha, seja do ponto de vista do preço, seja considerando a qualidade. Induz, sim, freqüentemente, à escolha da embalagem mais colorida. Outros fatores que eliminam a racionalidade puramente econômica nas decisões são a própria facilidade de acesso aos produtos (no armazém do vizinho…), a relação pessoal e amigável da freguesia, hábitos de consumo e sistemas de status (griffe, por exemplo), etc .

Os manuais de economia afirmam que o mercado perfeito restringe-se a algumas poucas exceções, em um mundo muito imperfeito, mas a análise econômica esquece, com freqüência, esta ressalva.

Sempre existe, é claro, o recurso aos modelos do mercado imperfeito. Embora mais próximos do “mundo real”, não têm, nem de longe, a mesma simplicidade e clareza dos modelos que descrevem o mercado perfeito. Assim, talvez em nome da elegância, muitos economistas, mesmo inteiramente cientes de que amplos setores da economia são controlados por monopólios e oligopólios, insistem na tese da desregulamentação acrítica do mercado, como se a livre ação racional dos agentes representasse a forma natural da vida econômica.

Essa confusão entre modelo e realidade tem conseqüências danosas para a política econômica. Um bom exemplo recente é o das privatizações de empresas estatais, no Brasil. Supõe-se, usando-se o lucro como indicador, que as empresas privadas sejam mais eficientes do que as estatais. O lucro é o objetivo das empresas privadas, enquanto o das estatais é a prestação de serviço. Assim, é óbvio que usando-se o lucro como indicador, as empresas privadas têm que ser mais eficientes do que as públicas. Este é um típico truísmo.

Recentemente, este mesmo raciocínio foi usado pelo discurso governamental para justificar a pretensa maior eficiência das universidades privadas de caráter empresarial, sobre as públicas, uma vez que as primeiras têm menor número de professores por aluno. É claro que quanto menor o número de professores, pior a biblioteca e maior a mensalidade, mais lucrativa a empresa educacional, maior a “produtividade” do trabalho e do capital. Porém, maior número de professores leva a um menor tamanho das classes e a mais atenção despendida pelos professores aos seus alunos, aumentando a qualidade do ensino.

Logo, em nome da eficiência, medida por indicadores de produtividade desenhados especificamente para realçar a suposta eficiência das empresas particulares, privatizam-se as empresas estatais e serviços públicos.

A suposta ineficiência das empresas públicas (quando medida pelo lucro) é agravada pelos preços baixos dos bens e serviços que produzem, utilizados, inadequadamente, pelo governo para o controle da inflação. Além disso, essas empresas apresentam dívidas artificiais em seus balanços, usadas que foram como instrumentos flexíveis para a tomada de empréstimos no exterior e equilíbrio do balanço de pagamentos. O que pode gerar a melhoria de eficiência na prestação de serviços públicos, como ocorre na telefonia ou na energia elétrica, não é a privatização em si, mas a quebra de monopólios e a competição, permanecendo as empresas estatais como instrumentos de políticas setoriais.

A pressuposição da existência prévia, “natural”, de um mercado livre, deformado pela existência das empresas estatais, é um dos enganadores pressupostos correntes da economia vulgar. Ora, como se assume, indevidamente que o mercado é a priori perfeito – devido à confusão entre modelo e realidade – ,simplesmente é esquecido que, quando se privatiza, destrói-se o patrimônio nacional e faz-se a simples substituição de monopólios ou oligopólios públicos por privados.

Embora algumas antigas empresas estatais apresentassem problemas bem conhecidos, (a oferta e o preço da energia e dos telefones, por exemplo) a tendência, como, rapidamente, estão demonstrando os casos da Light, no Rio de Janeiro e da Telesp, em São Paulo, é a uma acentuada perda de qualidade do serviço. No caso da Light, por exemplo, centenas de eletricitários foram sumariamente demitidos, e os serviços terceirizados, de maneira apressada, com uma imediata e acentuada queda no custo e na qualidade do serviço. Afinal, o compromisso da empresa passa a ser com o acionista, no país ou no exterior, não com a comunidade a que presta serviços. Sem competição, não há nada que a impeça de prestar o pior serviço pelo maior preço, embora aumente a eficiência medida pelo lucro. A providência a ser tomada, no sentido de se melhorarem os serviços das empresas públicas e das privadas e atrair investimentos, que se consubstanciem no aumento da capacidade instalada no País, é a quebra dos monopólios, não a privatização. Em alguns casos, de serviços públicos básicos, não se deve quebrá-los.

Um excelente exemplo comparativo na qualidade do serviço prestado vem da sistema ferroviário inglês, privatizado, quando comparado com o francês, público. Enquanto na França o “TAV” (trem de alta velocidade) desloca-se a mais de trezentos quilômetros por hora na rede ferroviária pública, ao cruzar a Mancha pelo Eurotunel, diminui-se a velocidade para 70 km por hora, uma vez que a empresa privada britânica BRITRAIL não tinha nenhuma razão para investir na melhoria da rede ferroviária, literalmente caindo aos pedaços. Mesmo assim, esta empresa está falindo, para o bem de seus acionistas e uma possível reestatização, melhor ainda para seus acionistas.

A tese de que tal problema seria resolvido por agências governamentais criadas para o fim específico de controlar os monopólios e oligopólios privados não se sustenta em um país como o Brasil, onde a justiça pouco funciona e a sociedade política é pouco organizada. A tendência é a que se transformem em espécies de representantes dessas empresas privadas, no âmbito governamental, com o fim de controlar consumidores insatisfeitos e de conseguir vantagens, isenções e financiamentos privilegiados para as empresas do setor que iriam controlar. Aliás, isto já vem ocorrendo como pode ser observado pelo reajuste das tarifas do setor elétrico e telefônico.

A confusão entre modelo e realidade não seria tão prejudicial à coletividade, caso não fosse parte integrante do tradicional discurso autoritário brasileiro. Quando, nos tempos da ditadura, a “realidade”, na forma dos movimentos sociais, se insurgia contra os modelos econômicos, chamava-se a polícia.

Hoje ,usa-se mecanismos de formação e controle de opinião para se atingir o mesmo fim. O “pensamento único” se consolida pela monótona repetição dos mesmos temas, dia após dia, pela imprensa, ou nos departamentos universitários, pela desqualificação prévia de pontos de vista desviantes.

2. O DEFICIT FISCAL NATURALIZADO E O ARBITRAMENTO DOS JUROS

O estudo do consumo e da renda, na teoria econômica, implica freqüentemente, a idéia de que os agentes econômicos, racionais, seriam destituídos de poder, em função da própria liberdade do mercado. Assim, o “estado” se igualaria, formalmente, às “famílias” e às empresas, como “agentes econômicos”, em igualdade de condições, comprando e vendendo.

Esta simplificação leva a que as economias nacionais, ou mesmo a economia globalizada, sejam percebidas como o somatório de uma miríade de milhões de decisões individuais. São, desta forma, convenientemente, esquecidas (ou subestimadas) relações de poder.

Esta visão omite que as famílias se distribuem ao longo de classes sociais e que há famílias proprietárias, que vem se mantendo assim há séculos, e pessoas – a idéia de “família” chega a desaparecer na extrema pobreza – absolutamente despossuídas, que assim nascem e assim continuam durante toda sua vida. O sucesso na vida é, segundo o modelo de indivíduos e “famílias” equalizados, uma questão de competência individual, de competição no mercado livre. O fracasso é atribuído à falta de agressividade, de inteligência, de educação ou de capacidade empreendedora. A distância de uma explicação racista é muito pequena, e sabemos haver uma relação direta entre a idéia de “sucesso” no mercado e o racismo na ideologia tradicional norte-americana.

E´, além disto, uma forma cômoda de atribuir-se às vítimas a culpa pela seu sofrimento, como acontece nos estupros, por exemplo.

Da mesma raiz é a tese de que o estado deva agir como um indivíduo, tanto na gestão das suas despesas, como no seu relacionamento com os demais agentes econômicos.

A comparação entre a gestão do estado com a administração de uma casa ou de uma empresa é o próximo passo lógico, decorrente da premissa de que a economia compõe-se da interação simétrica entre famílias, indivíduos e o estado. Esta confusão, intencional ou não, representa mais uma fonte de iniciativas políticas públicas prejudiciais à coletividade. A compreensão da macro-economia como um sistema micro-econômico ampliado representa, assim, mais uma fonte de iniciativas políticas públicas prejudiciais à coletividade.

Embora, na análise do consumo, famílias, estado e empresas atuem no mercado de maneira formalmente análoga, apenas o estado tem o direito de se apropriar da renda dos demais agentes econômicos, através da tributação, isto é, pelo exercício do poder de polícia. Apenas o estado tem o direito de emitir moeda, embora alguns, como o argentino, estejam propondo sua auto-extinção, desistindo deste direito que lhe é inerente.

Deve o estado, vivendo a metáfora do pai ou mãe de família, viver com seu orçamento doméstico, caso contrário será obrigado a contrair empréstimos a juros supostamente ditados pelo mercado. O FMI, os bancos e o governo dos países desenvolvidos são, simbolicamente, associados à figura repressiva de um patrão, professor ou gerente desumano. Esta simplificação tem sido repetida por governantes e divulgada pela imprensa para justificar as políticas de equilíbrio fiscal. A necessidade de equilíbrio de contas públicas, torna-se, por isso, uma verdadeira “ilusão fiscal”.

A insultuosa expressão “fazer o dever de casa” associa uma nação dotada de uma identidade e forjada por uma história com a figura de uma criança mal comportada. Esta infantilização de um povo é típica de uma relação colonial. O tratamento de aborígenes, africanos e negros norte-americanos como “crianças” sempre exprimiu a semântica da escravização.

Assim, em uma contabilidade elementar, o estado, vivendo a metáfora do equilíbrio das “finanças domésticas”, não pode gastar mais do que arrecada pois, caso contrário, deve emitir títulos para, emprestando do público, cobrir o “buraco” em suas contas. A emissão de títulos é a alternativa à emissão de moeda, que ocasiona a inflação. As taxas de juros abandonam o clássico papel de instrumento keynesiano de controle de inflação, para serem transformadas em mecanismo supostamente não inflacionário de controle temporário do deficit público. A solução final para o problema é, neste mundo de sonho (de alguns), a diminuição do papel do estado para a conquista do equilíbrio fiscal, destruindo-se conquistas sociais, privatizando-se empresas estatais (lucrativas e não lucrativas), afastando-o da economia para que gaste menos e possa equilibrar suas contas. No limite lógico, estaria a destruição final do estado, privatizadas ou extintas a justiça e as forças armadas, em curiosa aproximação do ultra-liberalismo a algumas das vertentes históricas das doutrinas anarquistas.

De outro lado, há necessidade, também, de se equilibrarem as contas externas e é comum entender-se que o déficit externo deva ser coberto pela emissão de títulos, recebendo tratamento similar ao do deficit público interno: quanto maior o deficit público, maior a taxa de juros, para que os capitais externos continuem aportando no País. Porém, não se pondera que com uma taxa de juros mais baixa é possível que esses capitais continuassem migrando para o País, só que para bolsas de valores ou diretamente na produção. Também não se pondera que, em determinadas situações, tais capitais são simplesmente indesejáveis.

Embora seja, teoricamente, aceitável uma relação equilibrada entre gastos e receitas públicas, pois os excedentes poderão, sim, ser inflacionários, suas causas são, sempre, na versão mais comum do pensamento econômico em curso no País, originárias do excesso de gastos do governo, raramente do patamar dos juros ou de problemas tributários. Estes são considerados prementes, apenas, no momento de se taxarem as poupanças da classe média ou de se cobrarem pesadas contribuições previdenciárias adicionais de parcelas desprotegidas da população. O aumento da arrecadação sobre outros segmentos sociais não é percebido como saída. O argumento é de que tal iniciativa “desestimularia os investimentos no País”, sendo, portanto, pouco desejável a taxação de empresas, sem se distinguir quais empresas, se produtivas ou financeiras, se vocacionadas ou não à exportação, se portadoras ou não de um conteúdo tecnológico estratégico para o desenvolvimento nacional. Não há a lembrança de que as taxas de juros, sempre altas, têm sido o grande fator de desestímulo da atividade empresarial no Brasil.

O resultado desse raciocínio é o esquecimento de que em 1998, por exemplo, “metade das quinhentas maiores empresas não recolheu um centavo de imposto de renda, e da metade restante o governo conseguiu arrecadar apenas R$ 3 bilhões. Acrescenta a mesma fonte que os maiores bancos produziram receita de R$ 97,14 bilhões e 28 deles não pagaram um níquel de IR como pessoa jurídica.” Na verdade, considerados mecanismos como o PROER, o financiamento das privatizações e isenções fiscais, o que tem havido é a transferência, em larga escala, de recursos públicos para o setor privado. É uma tributação às avessas. Isto sem se considerar a fantástica sonegação direta.

Um aspecto geralmente ignorado na discussão do deficit público é o das metodologias para o seu cálculo, das quais dependem sua existência e o seu tamanho. O deficit público é um fato socialmente construído pela teoria econômica, como em qualquer outra forma de produção de conhecimento. Mais ainda, construído em um ambiente específico de relações de poder, ao contrário do que pretende o modelo dominante, que o transforma em fenômeno natural, como uma montanha ou um rio. O conceito de orçamento público pode excluir, por exemplo, a própria dívida mobiliária, o que modificaria seu cálculo e tornaria as contas públicas mais favoráveis. A previdência social pode ser entendida, por exemplo, como um sistema contábil fechado, um fundo atuarial a parte, ou como um aspecto do orçamento público global. Qualquer dessas formas modifica, inteiramente, a idéia de “deficit da previdência” afetando os direitos dos diversos setores envolvidos na atual disputa a respeito do assunto. O mesmo raciocínio se aplica às demais categorias orçamentárias.

Alterações metodológicas não são tão infreqüentes no cálculo das contas nacionais e um exemplo recente vem da Itália, que o fez para participar do universo financeiro do Euro. Mudanças nos critérios de cálculo das contas públicas devem ser evitados para a garantia de sua credibilidade e manutenção das “regras do jogo”, mas são parte do processo de negociação da política econômica em países democráticos e não algo, em princípio, errado, devido à alguma sagrada “recomendação técnica” ou “dever de casa”. O deficit público, como outros conceitos, não é um fenômeno natural, mas um artefato cultural produzido pelo conhecimento científico e resultante da negociação política. Pode ter seu montante multiplicado por fraudes, o que uma auditoria poderia comprovar ou não, tranqüilizando, nesta última hipótese, os que são obrigados a pagá-lo. Pode, também, ser automaticamente reduzido a zero, por um ato de poder.

O deficit público é sempre considerado muito “alto”, no Brasil, sem maiores considerações, ou escalas de medida. Esquece-se, por exemplo, que, há vários anos, vem sendo acumulados sucessivos superávites primários no orçamento da União, chegando já, em alguns casos, perto dos 4% do PIB, em que pese a enorme sonegação e o que caracterizamos acima como “tributação às avessas”, isto é, o aporte acriterioso de recursos governamentais para o setor privado. O deficit público, sempre considerado alto, gera, como resultado, uma taxa de juros correspondentemente alta, suficientemente atraente, segundo o discurso corrente, para que sejam preferidos os investimentos em títulos governamentais. No caso do deficit cambial, a taxa de juros deverá, também, ser suficientemente elevada, segundo esse mesmo discurso, para que os investidores estrangeiros prefiram os títulos governamentais brasileiros a outros investimentos no Brasil e em outros países.

O problema é o de saber o quão elevada deve ser a taxa de juros para que os investidores continuem comprando títulos emitidos pelo governo, uma vez que não há nenhuma metodologia clara inventada para este fim, a não ser a velha “experiência e erro”. É´, por isso, razoável a suspeita de que a taxa de juros tem sido mantida, sempre, muito mais alta do que o necessário, dada a artificialidade e arbitrariedade de seu cálculo, frente ao sem número de variáveis em operação, aos poderosos interesses que lucram com a sua elevação, as relações orgânicas entre muitos de seus formuladores e o setor financeiro, e a falta de informação do público.

Uma forte evidência de que a taxa de juros tem sido mantida artificialmente alta no Brasil é que em 1993, o Presidente da República deduzindo, a partir do bom senso, que a taxa de juros estava demasiadamente elevada, enfrentou a opinião do Presidente do Banco Central, para mantê-la em níveis mais baixos, com o resultado de um excelente desempenho do setor estatal, baixo endividamento e elevadas taxas de desenvolvimento econômico.

Não se pode esquecer que as alternativas de investimento em um país como o Brasil não são tantas como nos países desenvolvidos, o que oferece ao governo uma grande liberdade na administração dos juros. Isto devido à situação quase monopsônica deste mesmo governo, como o grande tomador de dinheiro no mercado financeiro nacional.

Quando não são utilizados para cobrir o deficit público, ou corrigir os desequilíbrios cambiais, os juros servem, seguindo a clássica receita keynesiana, para “enxugar” a quantidade de moeda em circulação e controlar a inflação, estimulando ou desestimulando a atividade econômica. Muda-se, completamente a abordagem econômica para se obter o mesmo efeito de juros, desnecessariamente elevados. O controle da inflação via taxa de juros funciona em economias desenvolvidas associadas a democracias fortes e sociedades civis muito organizadas. Há boas razões para se pensar, porém, que em países como o Brasil este é um remédio pouco eficaz, pois as doses devem ser tão exageradas para fazer algum efeito que sua utilização perde o sentido, conforme demonstraram décadas de inflação associada a taxas de juros dentre as mais altas do mundo.

A principal razão do insucesso desse instrumento de política monetária no ambiente brasileiro é, novamente, a ignorância do que acontece na economia real e sua substituição por um modelo. Em uma economia fortemente oligopolizada, as taxas de juros representam custos facilmente repassáveis ao consumidor, agravando o processo inflacionário. O cálculo (“racional”) do gerentes dos monopólios ou setores oligopolizados será sempre o de manter o preço tão alto quanto possa extrair do consumidor, sem se preocupar com a concorrência. No caso de bens e serviços de demanda fortemente inelástica, o repasse é imediato e, freqüentemente, maior do que o próprio aumento de custos. O aumento dos preços desses bens e serviços tem, por outro lado, um forte impacto na economia como um todo, ocasionando o aumento geral de preços.

O problema com o uso da taxa de juros no controle da inflação no Brasil é, portanto, o de se saber, setor por setor da economia, o peso da inflação de demanda que reprime, frente ao peso da inflação de custos que ocasiona. A experiência das últimas décadas, no Brasil, parece demonstrar que altas de juros podem ser inflacionárias, ou pelo menos, inócuas, no controle da inflação, ressalvados os casos das recessões “brutais” . Neste final ano de 2001 a inflação deve se aproximar dos 10%, muito alta para uma economia desindexada, estando as taxas de juros atuais em 19%, na ponta do banco, elevadíssimas para qualquer economia do mundo.

Há que se lembrar, por outro lado, a existência de outros mecanismos monetários de combate à inflação, além da manipulação da taxa de juros, sem os seus efeitos sobre o deficit público, como, por exemplo, o controle direto da emissão primária de moeda, da quantidade disponível de para o público e da velocidade de sua circulação. Sem dúvida, ações neste sentido repercutirão sobre as taxas de juros, mas estas estão tão infladas que levará muito tempo para que sua influência se faça sentir.

O ajuste fiscal para o combate à inflação, através do corte dos gastos públicos, é por muitos entendido como primeiro e máximo fim nacional. O mais surpreendente é que dadas as metodologias de cálculo do deficit e o uso que se faz das taxas de juros para combatê-lo, sua extinção representa um objetivo claramente inatingível: já que a dívida contraída em nome das exigências do deficit passa a fazer parte desse mesmo deficit, ele sempre aumenta. Isto exige que a taxa de juros, como conseqüência, também, sempre aumente, o que, por sua vez, ocasiona novo incremento no deficit, que exige taxas de juros ainda mais altas, em um processo de causação circular envolvendo as duas variáveis.

O equilíbrio fiscal, por intermédio do corte de despesas e das privatizações, poderia ser obtido apenas no primeiro momento do processo acima descrito. Haja visto o montante da dívida pública brasileira, de hoje, como resultado desta política. Segundo cálculos de Reinaldo Gonçalves, em 1995, a dívida líquida total era de R$ 153 bilhões e deverá chegar, ao final de 2002, em R$ 900 bilhões.

. A partir de um certo ponto, de há muito já atingido no Brasil, os efeitos únicos dessas medidas passam a ser a transferência das empresas estatais para mãos de particulares, em geral do exterior, e a transferência da renda pública que seria utilizada em salários, pensões, aposentadorias, merenda escolar, escolas, saúde, estradas, etc. para o setor financeiro do País e do exterior, por intermédio dos juros. Hoje, a política monetária deve representar o mais importante fator de concentração de renda no Brasil: além da transferência de recursos do governo o faz, também, do setor produtivo e de toda a massa de salários para o setor financeiro, crescentemente internacionalizado.

Os modelos científicos de hoje são muito mais complicados dos que os simples e simplistas modelos mecânicos (vide a contemporânea matemática dos sistemas complexos em associação com a chamada “teoria do caos”). Mas a ciência econômica continua insistindo neste mundo ideal, platônico, regulado pelas leis pretensamente naturais de mercado, descrito por um restrito modelo mecânico, como o da física newtoniana. Isto não é surpresa, uma vez que os grandes modelos da economia liberal são contemporâneos históricos do desenvolvimento da física clássica.

Assim, a naturalização e a postulada inevitabilidade da relação deficit público-taxa de juros, estabelecida por um modelo mecânico, anula logicamente, a possibilidade de formulação de políticas que conciliem desenvolvimento econômico, controle do deficit público e estabilidade monetária.

III-A CRISE ATUAL E SUAS SAÍDAS

A aguda crise atual resulta dos desequilíbrios originários desta maciça transferência de renda e ativos, públicos e privados, para o setor financeiro e para o exterior, durante os últimos anos, decorrente dos modelos de análise e da política econômica acima descritos.

Não é, portanto, uma “crise de conjuntura” mas uma crise de poder e de formas de pensar compatíveis com as relações de poder dominantes.

Embora a mudança na situação internacional, após os episódios de 11 de Setembro, possa alterar o quadro, a continuidade da longa crise em curso poderá implicar a destruição da Petrobrás e do Banco do Brasil e o atrelamento permanente do País ao “establishment” econômico internacional, em uma posição caudatária, com o fim do estado nacional soberano. Característica desta nova forma de inserção na economia mundial poderá ser a dolarização, como está acontecendo na Argentina. Isto poderá acontecer se a crise continuar a ser enfrentada com taxas de juros fantasticamente altas, justificadas pelo combate ao esperado processo inflacionário, decorrente das recentes desvalorizações cambial e para garantia dos níveis de reservas em dólar, posto que, a cada nova situação, encontra-se um pretexto diferente para juros sempre mais altos.

O cenário histórico pessimista, dando-se seqüência a esta política de altas taxas de juros, crescimento artificial do deficit e cortes sem fim dos gastos públicos, prevê a desativação operacional das atividades essenciais, como previdência, saúde, educação, justiça e forças armadas, devido ao “arrocho”. É evidente, hoje, a desagregação do universidades, sistemas públicos de saúde e previdência, por exemplo. No plano institucional, o resultado mais visível será a ameaça de fragmentação política do País, devido à transferência dos custos do impossível ajuste para os estados federados. Um quadro de desagregação análogo ao da ex-União Soviética, ou talvez, como o que está se aproximando da Argentina.

O fato de não estarmos, no momento, tão mal como a Argentina, devido ao câmbio flexível, e a medidas de alívio pré-eleitorais não nos deve iludir. O Brasil é, no momento, o sexto maior risco-país do mundo, devido ao montante de sua dívida. O problema é saber por quanto tempo poderá ser “rolada”. Tudo será feito pelo governo atual para que “estoure” no próximo.

Neste cenário pessimista, podemos desistir de qualquer proposta de formulação de política econômica e esperar que Deus e os americanos tenham piedade de nós…

Há, não obstante, saídas, tanto para o País como para o pensamento econômico, embora a situação atual seja muito difícil. Inicialmente, há que se reconhecer a insuficiência dos modelos de análise e o fracasso da política econômica que nos levou à dramática situação que atravessamos. É indispensável que o deficit público – um verdadeiro “fetiche”- seja colocado em seu devido lugar. Novos modelos econômicos devem considerá-lo, e à taxa de juros, como dependentes de uma política maior de desenvolvimento social e econômico, e não o contrário. Esta, por sinal, parece, contraditoriamente, ser a política pregada pela maioria dos economistas norte-americanos para o seu próprio País.

O cenário otimista inclui um dólar valorizado. Repetimos a mesma a opinião, apresentada em 1999, após o fim da paridade do real com o dólar, de que a acentuada desvalorização do Real, então imposta pelo mercado, teria um impacto muito positivo, levando a uma nova fase de crescimento econômico; de que voltariam a ser produzidos os bens serviços que deixamos de produzir no País, devido à nossa antiga “moeda forte” e seria iniciada, assim, uma nova fase de “substituição de importações”, com o aproveitamento da capacidade ociosa na economia e novos investimentos; nossas exportações ficariam mais competitivas, com crescentes superavits na balança comercial. Não é uma surpresa, portanto, que esteja havendo crescimento econômico após as últimas desvalorizações ocorridas em 2001, em que pesem as elevadas taxas de juros. Crescimento que encontrará seu fim na inelasticidade das exportações, devido às barreiras de diversos tipos dos Estados Unidos e da Europa e no esgotamento desta recente fase de substituição de importações.

Deve ser aqui lembrada que o diagnóstico acima, hoje quase consensual, encontrou forte resistência dos formuladores da política econômica governamental, que só desvalorizaram o real, em 1999, por imposição do mercado, contra sua vontade, portanto.

A efetiva superação da crise atual, com um crescimento permanente e sustentado, não ocorrerá com a manutenção dos juros nos presentes níveis. Isto posto, a etapa seguinte é a de recuperação da capacidade fiscal do estado, por meio da cobrança do imposto de renda das grandes empresas, hoje isentas, e pela inclusão de amplas parcelas do sistema econômico no universo tributário no interior da própria “economia formal”, com o efetivo combate à sonegação.

Será necessário o alongamento do perfil da dívida, o que não é impossível para o governo, pois um único tomador no mercado, com uma dívida que chega perto de 60% do PIB, dispõe de forte poder de barganha, se contar com as condições morais para tanto. Uma negociação visando o alongamento da dívida é perfeitamente legítima, se for considerado que é com o povo, através da Constituição, que se estabelece a relação política e jurídica essencial do estado. Esta solução é infinitamente melhor do que deixar o sistema “estourar”, como aconteceu com o câmbio, no Brasil em 1999 ,ou como está acontecendo agora com a Argentina, forçada à moratória, depois que o país foi literalmente arrasado. A renegociação da dívida deve ser precedida, naturalmente, por uma auditoria.

Haverá, ainda, a necessidade de uma política industrial e que o estado intervenha para a proteção da setor produtivo nacional. O controle externo dos fluxos de produtos, serviços e capitais, com a seleção adequada dos que interessam à nação, é outra medida que se imporá, até mesmo em represália às barreiras externas. É notável que essa visão , só no presente momento, após anos de práticas opostas, esteja sendo incorporada ao pensamento dominante e a ao discurso governamental .

O ponto central, resolvida a questão do câmbio pelo próprio mercado contra o governo, em 1999 e, da mesma forma, no presente ano, – é a manutenção da taxa de juros, em patamares suficientemente baixos para gerar um padrão de desenvolvimento econômico compatível com as necessidades do País e de sua população. Para tanto, a taxa de juros deverá ser metodológica e politicamente desvinculada do deficit público e, em certa medida, do controle da inflação, pelo menos da maneira com vem sendo estabelecida esta relação.

Impõe-se um projeto nacional ancorado em um política de desenvolvimento social e econômico. Situados a distribuição de renda e o desenvolvimento como objetivos principais, o aumento da atividade econômica terá conseqüências imediatas na arrecadação e na criação das condições para um decréscimo no deficit público.

A saída da crise brasileira passa pelo questionamento de valores fundamentais como o da soberania do mercado. O mercado não pode ser considerado como um fim em si mesmo, mas nada mais que um instrumento, dentre outros, mais ou menos satisfatório, para a satisfação das necessidades humanas contribuindo, assim, para sua felicidade. Não é um valor absoluto, atrapalhado em seu funcionamento por indesejáveis entraves políticos, mas algo que deve ser subordinado a outros conceitos e valores, especialmente aos de povo e nação.

Para concluir, deve ser lembrado que o amoral homo economicus é uma abstração. Os economistas não precisam imitá-lo, abrindo “sacos de maldade”. Felizmente, a maioria dos economistas está consciente dessa implicação, mas é indispensável que se realize uma crítica ética e política do pensamento econômico, para que a economia volte a se comprometer com a compreensão do Brasil e com a melhoria da vida de seu povo.

Para que o nobre saber econômico não se transforme em mais outra mitologia elaborada para justificar e infringir sofrimento!